José Lucas Azevedo
Jornalista e mestre em Comunicação Digital e Dados pela Fundação Getúlio Vargas; pesquisador do LABGEPEN
Por muito tempo, o tema da prisão foi apresentado na televisão e na internet a partir da violência, da punição e da caricatura. O resultado é o reforço de um estigma que acompanha pessoas egressas do sistema prisional muito depois de cumprirem suas penas. Um olhar social que as reduz à condição de “ex-presas”, como se o erro fosse uma tatuagem indelével.
Mas, nos últimos anos, a comunicação e o entretenimento começaram a explorar caminhos mais complexos: histórias realistas, vozes autênticas e influenciadores que humanizam quem viveu o cárcere. A mensagem implícita pode ser poderosa e capaz de reconhecer humanidade e reconstruir vínculos sociais.
Quando a novela promove políticas públicas
Na ficção recente, um caso chama atenção: Ryan, personagem da novela “Dona de Mim” (TV Globo, 2025), vivido pelo rapper e ator L7NNON (Lennon Frassetti). O jovem tenta reconstruir a vida após a prisão e depara com dilemas reais — a dificuldade para conseguir trabalho, a desconfiança social e o peso de carregar um passado público.
Diferente de representações antigas, a trama evita o estereótipo do “criminoso arrependido” e mostra o cotidiano ambíguo da reinserção social: o esforço para seguir regras, reconstruir afetos e enfrentar um sistema que, na prática, ainda não está preparado para acolher. O efeito é pedagógico. Quando a audiência acompanha a rotina de um personagem que enfrenta burocracias e preconceitos reais, abre-se espaço para empatia e reflexão social.
Também este ano, a nova versão da novela Vale Tudo, cuja versão original data de 1998, mostrou a capacidade de engajamento do entretenimento. Em 2025, o remake da novela exibiu uma cena em que a personagem Lucimar descobre, pela televisão, a possibilidade de buscar ajuda da Defensoria Pública da União (DPU) para resolver questões de pensão. Poucos dias depois da exibição, o serviço real para o cidadão registrou recorde de atendimentos[1].
A lição é direta: quando a TV comunica direitos de forma acessível, o público responde. Esse modelo de entretenimento-educação (Singhal; Rogers, 2002) poderia ser replicado para temas como documentação civil, trabalho e apoio psicossocial a egressos — serviços que já existem, mas são desconhecidos pela maioria da população. Uma simples menção em horário nobre pode transformar informação em política pública efetiva.
Da ficção ao feed: novas narrativas digitais sobre o cárcere
Se a televisão ainda é um canal de massa, a internet se tornou o território da reconstrução individual, mas de grande capilaridade também. Plataformas como Instagram e TikTok abrigam hoje narrativas que desafiam a visão estigmatizada do cárcere e mostram que o recomeço é possível.
O atleta Alex Lopes (@lopes.alexx) usa o Instagram para compartilhar sua trajetória de ressocialização e sucesso esportivo. Suas postagens de treinos, medalhas e depoimentos sinceros não escondem o passado, mas o ressignificam. O tom é natural, ele fala como quem vive, e não como quem “pede desculpas”. Esse enquadramento da pessoa antes da pena, e não a pena antes da pessoa se mostra fundamental para reconstruir cidadania (GOFFMAN, 1988).
Outro exemplo vem da psicóloga Thamiris Castro, que, a partir de sua atuação em presídios, trouxe à rede social TikTok relatos curtos sobre as dores, histórias e desafios psicológicos de quem está privado de liberdade. Ela traduz o sistema prisional para um público jovem, com linguagem leve e vídeos curtos, mas sem diluir a complexidade do tema. É o tipo de comunicação que precisa ser adotado de forma pública, pois informa, educa e desarma preconceitos (CNJ; PNUD, 2023).
Também emergem as chamadas criadoras de conteúdo digital que possuem relacionamentos com pessoas privadas de liberdade. São influenciadoras que produzem conteúdo sobre a rotina de visitas e relacionamentos afetivos[2]. Embora parte da audiência consuma com curiosidade, a exposição tem efeito colateral positivo ao humanizar e “dar rosto” às famílias que vivem o sistema prisional de fora para dentro, lembrando que a prisão não atinge apenas o indivíduo, mas todo o seu entorno afetivo.
Comunicação como política de reparação
Pesquisas de comunicação pública e direitos humanos apontam que a representação social das pessoas egressas está no centro da luta pela ressocialização. Erving Goffman (1988) definiu o estigma como um “atributo desqualificante” que nega à pessoa o reconhecimento pleno de humanidade. No Brasil, essa negação é agravada por desigualdades raciais e econômicas que atingem majoritariamente jovens, negros e pobres. Tal rótulo os acompanha fora dos muros (WACQUANT, 2001).
Por isso, a comunicação é parte fundamental de uma boa política pública. Quando novelas, séries, influenciadores e instituições passam a retratar o egresso como cidadão, e não como ameaça, cumprem função reparadora. Mudam o enquadramento social, deslocam o foco da culpa para a oportunidade e aproximam o público de histórias possíveis.
O Estado tem papel central nesse processo. Campanhas de informação sobre serviços, incentivos a empresas contratantes, programas de mídia educativa e parcerias com roteiristas e criadores de conteúdo podem consolidar um ecossistema narrativo de segunda chance (CNJ; PNUD, 2023).
A partir de novas narrativas, a sociedade pode entender que o recomeço é um direito. E esse entendimento coletivo pode começar onde as pessoas olham todos os dias: na tela da TV e no feed do celular.

