A cor da questão 12/11/2025

Eufemismos, distorções e afins no debate do PL Antifacções

Trazer o terrorismo para o enquadramento de ilícitos envolvendo organizações criminosas recruta a falácia do endurecimento penal como saída para o alcance de uma segurança pública mais efetiva. A lei que regula o Estado de Direito dá espaço para a retórica da guerra e os cidadãos passam a ser tratados como adversários a serem eliminados

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Juliana Brandão

Doutora em Direitos Humanos pela USP e pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

A prisão da acadêmica, escritora e notória ativista pelos direitos civis dos negros Angela Davis, nos idos de 1970, foi celebrada pelo então presidente estadunidense Richard Nixon, que parabenizou os envolvidos na captura de uma “terrorista perigosa.” À época dos acontecimentos, Davis atuava como professora assistente na Universidade da Califórnia. Mesmo depois de ser considerada inocente, em 1972, continuou sendo alvo de boicotes na sua carreira universitária.

No cenário brasileiro, em contexto que tem mobilizado o Judiciário, pela via da ADPF 635 (ADPF das Favelas), a Segurança Pública Carioca, com a Operação Contenção, o Executivo Federal, com a propositura do PL 5528/2025 e, agora, o Legislativo Federal, com o substitutivo relatado pelo deputado Guilherme Derrite (PP-SP), ganha o centro das atenções a narrativa que busca aproximar a discussão das facções criminosas da Lei Antiterrorismo.

Longe de ser debate meramente acadêmico, os contornos da tecnicidade jurídica nos aproximam da concretude da dignidade humana. Isso porque desvelam, simultaneamente, quem e o que importa para o direito – é na norma jurídica que aparecem as escolhas que serão reguladas no presente e as apostas que se projetam para o futuro. As perspectivas que se anunciam impactam tanto a dimensão da vida privada como também a da convivência pública.

De fato, na técnica jurídica, não há crime, tampouco pena, sem lei prévia que o defina. O princípio da legalidade acolhido, inclusive, no artigo 5º, inciso II da Constituição Federal, é umas das principais ferramentas procedimentais que o direito recruta para resguardar seu valor e a sua hierarquia no tecido social.

Contudo, é sempre importante ter presente que a tecnicidade sem contexto opera como instrumento hábil na manutenção do racismo. Não precisamos ir muito longe para aferirmos, na prática, como isso se dá. Desse modo, de ingenuidade não se trata quando o debate atual faz parecer que estamos lidando apenas com uma distinção terminológica.

Trazer o terrorismo para o enquadramento de ilícitos envolvendo organizações criminosas recruta a falácia do endurecimento penal como saída para o alcance de uma segurança pública mais efetiva. A lei que regula o Estado de Direito dá espaço para a retórica da guerra e os cidadãos passam a ser tratados como adversários a serem eliminados.

Em nome da guerra ao terror, justificam-se intervenções militares que combatem o inimigo e não o criminoso. Nesse contexto, a flexibilidade de garantias em nome da segurança permite, inclusive, a violação de direitos fundamentais. Aqui é válido ter presente que, no campo das atividades policiais – que caracterizam a atuação estatal na seara da segurança pública – a polícia, seja ela qual for, está necessariamente sujeita à legalidade, ao controle judicial e, inclusive, o uso da força deve atender aos ditames legais. Na guerra, as regras são outras e, justamente por isso, trata-se de um cenário frequente de toda sorte de violação de direitos humanos.

Aceitar, portanto, a técnica jurídica que traz a retórica do terrorismo para a segurança pública é endossar o risco de uma política criminal que sirva a outros propósitos que fundamentalmente normalizam a violência como principal ferramenta para a solução de conflitos. Além disso, nada garante que isso não servirá para perseguir desafetos políticos, grupos vulneráveis e mesmo cidadãos que não podem contar com nada além do que está previsto na lei.

Nessa leitura superficial do fenômeno social, que insiste numa suposta neutralidade na aplicação da lei, para além dos pontos que abrem espaço para a distorção legal, temos ainda o escamoteamento do viés racial. Carregar a marca de ter Cosme e Damião como as únicas proteções, como bem cantaram os Racionais MC´s, numa crítica contundente dos anos 90 que ainda reverbera, faz com que lembremos a evidência da distorção do que é segurança pública, nos territórios que o direito não alcança.  Neles a bala nunca tem dúvida de quem é o alvo.

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