Perícia em evidência 12/11/2025

Na guerra das narrativas da Operação da Penha a Perícia está em destaque, para o bem e para o mal

A Perícia Oficial no Rio de Janeiro é a única no Brasil que tem um delegado de polícia como diretor da Superintendência-Geral de Polícia Técnico-Científica. Essa aberração organizacional gera desconforto e abre questionamentos quanto à autonomia do órgão e sua esperada isenção

Compartilhe

Cássio Thyone Almeida de Rosa

Graduado em Geologia pela UnB, com especialização em Geologia Econômica. Perito Criminal Aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal. Ex-Presidente e atual membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Os complexos da Penha e do Alemão, na Zona Norte do Rio de Janeiro, foram palco da mais letal operação policial do país, resultando em 121 mortes. O posto havia sido ocupado pela invasão do complexo penitenciário do Carandiru, em outubro de 1992. Aquela ação da Polícia Militar de São Paulo registrou 111 óbitos.

O que se viu em imagens foi cenário de guerra. A imagem do dia seguinte correu o mundo: mais de 50 corpos enfileirados em uma praça da comunidade, retirados da Serra da Misericórdia pelos próprios moradores. O horror foi ainda pior nas redes sociais: corpos com lesões de tiros de fuzis, cabeças abertas por projéteis com alto poder lesivo, um corpo decapitado, sangue e dor.

Quando a repercussão tomou as manchetes, a disputa das narrativas começou. De um lado o governo do Rio de Janeiro, explicando os detalhes da operação, dando suas justificativas para a escolha da estratégia que se repete há mais de 40 anos, com efetividade questionada pela própria ineficiência da chamada guerra contra as drogas, baseada no enfrentamento armado, desconectada da efetiva ocupação do território com uma subsequente consolidação de políticas de estado baseadas na presença e no desenvolvimento sistêmico, incluindo a oferta de serviços básicos, educação, saúde, saneamento e transporte, entre outros. De outro lado, organizações de moradores, ativistas de direitos humanos, órgãos oficiais como a defensoria pública do RJ, Ministério Público e ONU, passaram a buscar transparência quanto às apurações do evento, incluindo as ações que envolviam a realização de exames periciais.

Numa declaração no mínimo infeliz, o secretário de Polícia Civil do Rio de Janeiro, Felipe Curi, chegou a atribuir aos moradores que retiraram corpos da mata no Complexo da Penha a possibilidade de terem cometido “fraude processual”. A questão básica é que a atribuição da preservação do local de crime é dos próprios agentes de segurança e, no caso em questão, a polícia, após o enfrentamento na Serra da Misericórdia, simplesmente abandonou o território. Os moradores, buscando seus parentes e conhecidos, percorreram a área e retiraram os cadáveres, que foram levados para a praça pública.

Na sequência desse disse me disse, o Supremo Tribunal Federal (STF), através do ministro Alexandre de Moraes, determinou a preservação integral de todas as provas relacionadas à operação, incluindo imagens de câmeras corporais, registros de GPS e a manutenção intacta dos locais de morte, de modo a permitir investigações independentes.

Após dez dias corridos, nós nos perguntamos em relação a essa perícia de local: até quando vamos aguardar sua realização? Alguém está lá preservando a mata? Soa até engraçado. E as demais provas? Sobre as imagens de câmeras, diversas apareceram em matérias jornalísticas, mas muitas já tiveram sua inexistência atribuída às conhecidas limitações do uso das câmeras corporais: – Sabe como é meu irmão: as baterias duram pouco. – Tivemos problemas operacionais…e por aí vai!

A questão da perícia dos corpos no Instituto de Medicina Legal envolveu novas disputas. Sanadas as dificuldades operacionais pelo elevado número de corpos que chegavam, logo a Polícia Civil deixou claro que todos os exames seriam realizados pelos peritos legistas do estado, abrindo mão até da ajuda da Polícia Federal, disposta a colaborar para nova tentativa do governo federal em demonstrar engajamento no discurso da sonhada integração entre as forças. Ocorre que a Perícia Oficial no Rio de Janeiro é a única no Brasil que tem um delegado de polícia no posto de diretor da Superintendência-Geral de Polícia Técnico-Científica (SGPTC). Essa aberração organizacional gera desconforto e abre questionamentos quanto à autonomia do órgão e sua esperada isenção, afastando um viés institucional associado aos exames. O Ministério Público do Rio de Janeiro também entrou nessa peleja e enviou seus “peritos legistas” para acompanhar os exames. Eles foram então autorizados a entrar no IML. Também pudera, não é o MP que fiscaliza a polícia?

No olho do furacão, o Ministério Público Federal no Rio de Janeiro, em ofício enviado ao diretor do IML, solicitou o recebimento de informações sobre as perícias para identificação dos mais de 100 mortos na megaoperação realizada, elencando ainda oito itens mínimos a serem cumpridos pelo IML fluminense nos protocolos adotados para identificação dos corpos:

  1. Descrição completa das lesões externas;
  2. Descrição completa das lesões internas;
  3. Identificação dos projéteis nos corpos e extração para encaminhamento pericial;
  4. Exame radiográfico dos polibaleados;
  5. Croqui com lesão dos corpos;
  6. Fotografia de todas as lesões encontradas nos cadáveres;
  7. Fotografia das características individualizantes;
  8. Item de discussão contendo trajetória dos projéteis e distância dos disparos

Uma pergunta não pode deixar de ser feita: esses itens não seriam os mesmos que deveriam ser providenciados rotineiramente no IML, em todos os exames? Se precisamos solicitar é por que não são normalmente cumpridos?

De todo modo, o saldo positivo é que, neste caso, a mobilização em relação à perícia certamente foi muito acima do verificada em relação às operações anteriores de mesma natureza. A própria Defensoria Pública do RJ chegou a solicitar a participação de perito independente (que neste caso seria uma espécie de Assistente Técnico), o que foi negado. Sobre a iniciativa do MPF-RJ, a reação do MP-RJ foi contrária, requerendo para si a exclusividade do controle da atividade policial. Briga de titãs!

Com um horizonte no qual os desdobramentos envolvendo a perícia são inúmeros, nossa única certeza é a de que não nos faltará assunto nessa coluna.

Newsletter

Cadastre e receba as novas edições por email

Captcha obrigatório
Seu e-mail foi cadastrado com sucesso!

EDIÇÕES ANTERIORES