Múltiplas Vozes 06/11/2025

A Segurança Pública na encruzilhada

É pouco provável que a política de enfrentamento seja institucionalizada, embora defendida por setores da polícia, da política e da mídia, por ser flagrantemente ilegal

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Arthur Trindade M. Costa

Professor de sociologia da Universidade de Brasília e conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Um relatório do Ministério da Justiça apontou que, em 2024, havia no Brasil 88 facções de base prisional no Brasil. Têm atuação local 72 delas, como os Bala na Cara, do Rio Grande do Sul, e o Comboio do Cão, do Distrito Federal. Há 14 facções regionais que atuam em mais de dois estados, como o Comando da Fronteira, a Família do Norte e os Guardiões do Estado. O relatório também aponta a existência de duas facções nacionais: o Primeiro Comando da Capital e o Comando Vermelho. Elas estão presentes em quase todos os estados e possuem conexões internacionais. A presença dessas facções desafia os governos, colocando-os diante de uma encruzilhada sobre a melhor forma de enfrentá-las.

O crime organizado não é um problema exclusivo do Brasil. A Colômbia viveu situação dramática na década de 1990, quando cartéis dominavam parte dos territórios de Bogotá e de Medellín, além de praticarem atentados contra autoridades políticas. Para enfrentá-las, os governos municipais implantaram políticas exitosas de reforma urbana. Foi realizada também uma ampla reforma na polícia. Hoje, a situação da Colômbia está bem melhor do que há 30 anos.

Soluções urbanas para retomada do controle do território já foram tentadas no Rio de Janeiro. Na década de 1990, iniciou-se a implantação do projeto Favela-Bairro que, dentre outras medidas, visava abrir avenidas que permitissem a circulação das polícias sem a necessidade de emprego de blindados. Alguns anos mais tarde foram criadas as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) para fixar a presença policial nas comunidades. Apesar de promissoras, ambas iniciativas foram abandonadas por má gestão e falta de recursos.

O México optou por militarizar o combate aos cartéis que assolam suas principais cidades. Em 2019, foi criada uma Guarda Nacional, cujo efetivo ultrapassa 120 mil policiais. A guarda é comandada por um general e conta com membros das Forças Armadas. Apesar do esforço inicial, o combate ao crime organizado parece estar fracassando. São inúmeras as denúncias de corrupção e de abusos envolvendo os militares.

No Brasil, a militarização não é uma opção. É pouco provável que as Forças Armadas aceitem ampliar sua participação na segurança pública, assumindo a linha de frente no combate ao crime organizado. A participação dos militares na segurança pública tem se restringido às operações de Garantia de Lei e Ordem, que são de natureza temporária. Por outro lado, a ampliação da cooperação nas atividades de inteligência, monitoração e fiscalização parece ser um caminho promissor.

O modelo de El Salvador tem sido descrito como uma solução de enfrentamento ao crime organizado. Depois de décadas convivendo com altíssimas taxas de homicídios cometidas pela Marras, em 2022, o governo de Nayib Bukele decretou regime de exceção, suspendendo o devido processo legal e a liberdade de associação. As medidas resultaram na queda significativa das taxas de homicídios, no aumento exponencial da população prisional e numa enxurrada de denúncias de torturas e arbitrariedades.

É muito difícil que o Brasil siga o caminho adotado por El Salvador. É improvável que o Judiciário aceite a supressão das garantias ao devido processo legal, posto que são cláusulas pétreas da Constituição. Portanto, o discurso da extrema direita favorável à adoção do modelo salvadorenho não passa de bravata eleitoral.

A encruzilhada brasileira aponta para duas direções. A primeira é simbolizada pela ação policial realizada na semana passada, no Rio de Janeiro. Na operação, as forças policiais emboscaram e mataram mais de 120 pessoas em flagrante desacordo com o devido processo legal. Embora o objetivo fosse o cumprimento de mandados de prisão, até a presente data nenhum nome da lista de procurados foi identificado entre os mortos.

Esse caminho não é uma novidade. Há décadas as forças policiais entram nas comunidades pobres para enfrentar as facções criminais. A política de enfrentamento não se restringe ao Rio de Janeiro. Em julho de 2023, a Polícia Militar de São Paulo deflagrou a Operação Escudo na Baixada Santista, que resultou na morte de 28 pessoas. A operação foi seguida pela Operação Verão, que resultou em 56 mortes adicionais, totalizando 84 mortes nas duas ações. Há fundadas suspeitas de que tenham ocorrido execuções.

Apesar das suspeitas de execuções e das mortes frequentes de moradores, esse tipo de enfrentamento normalmente proporciona dividendos eleitorais. As consequências dessa politica de enfrentamento são de curto prazo. Logo as posições na estrutura do crime serão preenchidas e as facções retomarão o domínio territorial. É pouco provável que a política de enfrentamento seja institucionalizada, embora defendida por setores da polícia, da política e da mídia, por ser flagrantemente ilegal.

A outra direção da encruzilhada brasileira aponta para a maior integração das operações de investigação, aumentando a articulação das forças policiais com o Ministério Público, a Receita Federal, o COAF, o Ministério da Defesa, das Relações Exteriores, do Meio Ambiente, dentre outros. Foi o que aconteceu nas Operações Carbono Oculto e Tank, que investigaram fraudes e lavagem de dinheiro no setor de combustíveis. As operações resultaram no sequestro de mais de R$ 2 bilhões de bens e valores.

Essas operações representam uma mudança de paradigma no enfrentamento ao crime organizado, priorizando inteligência financeira, cooperação institucional e ações coordenadas em vez de confrontos armados. Para isso, é necessário estabelecer um arcabouço normativo que fomente e institucionalize a cooperação. Esse tipo de iniciativa tem pouca visibilidade e não dá voto. Entretanto, seus efeitos são duradouros e têm alto impacto.

Embora promissor, esse caminho não é suficiente para coibir a atuação das facções e recuperar o controle dos territórios ocupados. São necessárias também a urbanização e a ampliação da presença policial nessas áreas. O saneamento das polícias e o fortalecimento dos sistemas de controle são fundamentais, uma vez que o crime organizado depende da corrupção policial. Incrementar a integração das investigações, urbanizar as áreas ocupadas e sanear as polícias é um caminho difícil e caro, mas os benefícios proporcionados por essas ações são duradouros. No entanto, é um caminho com pouco apelo eleitoral.

Em 2026, o eleitorado brasileiro terá que decidir sobre qual direção devemos tomar: a bravata do modelo salvadorenho, o enfrentamento direto, a  cooperação para investigar, a urbanização ou o saneamento das polícias e articulação. Infelizmente, o caminho fácil do enfrentamento é mais tentador.

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