Múltiplas Vozes 22/10/2025

20 anos do Estatuto do Desarmamento: a lei que ajudou a salvar vidas

Da mesma forma que já passou o momento de discutir se a cloroquina ou a vacina é que “resolvem” o problema da COVID-19, duas décadas após o advento do ED já passou muito da hora de reconhecer, com base nas pesquisas científicas e evidências empíricas, que mais armas levam a mais crimes

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Daniel Cerqueira

Pesquisador do Ipea, conselheiro do FBSP e coordenador do Atlas da Violência

Em 2023, a Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003, também conhecida como o Estatuto do Desarmamento (ED), completou 20 anos. Durante esse período, milhares de vidas foram poupadas por consequência dessa lei. Em última instância, ao restringir o acesso, aumentar o custo e vedar o porte de arma de fogo nas ruas, com as devidas exceções relacionadas aos operadores da segurança pública, o ED visava promover o controle responsável das armas de fogo e munições no país.

Menos armas nas ruas e dentro de casa ocasiona menos mortes violentas. É o que diz o virtual consenso das pesquisas científicas internacionais e nacionais, como aponta a meta-análise da literatura, que considerou 130 estudos em dez países, feita por Santaella-Tenório e colegas (2016)[1]. Mas por quais canais causais esse fenômeno opera?

Primeiro, ao contrário do que prega a retórica armamentista, a arma de fogo dentro do lar não protege o cidadão de bem; pelo contrário, é um fator de risco para todos os moradores, como encontrou Anglemayer (2014)[2]. Segundo, com uma arma na mão as pessoas se sentem empoderadas e, muitas vezes, quando se envolvem em discussões ou contendas, acabam fazendo uso da arma, como nos casos da chacina na sinuca em Sinop, no Mato Grosso, em que sete pessoas, inclusive uma criança, foram mortas; ou no caso bárbaro do assassinato de um gari em Belo Horizonte. Terceiro, ao contrário do que os armamentistas pregam, a arma de fogo nas cidades é um bom instrumento de ataque, mas péssimo de defesa, em razão do fator surpresa. Em artigo da American Health of Public Police, os autores encontraram que, em casos de assalto, indivíduos que portam armas de fogo se expõem a um risco 4,4 vezes maior de serem assassinados. No Brasil, Lima et al. (2000) chegaram a conclusões semelhantes[3]. Quarto, quanto mais armas no mercado legal, mais armas serão desviadas para o mercado ilegal, fazendo com que o preço delas caia no mercado ilícito e, em consequência, permitindo o acesso a armamento por criminosos desorganizados que muitas vezes cometem latrocínios com essas armas.

No Brasil, Cerqueira e De Mello (2013) mostraram que, não fosse o ED, entre 2003 e 2007 teria havido 7,4% a mais de homicídios. Adicionalmente, em três teses de doutorado em economia, da USP, FGV e PUC-Rio[4], os autores mostraram que, no caso brasileiro, quanto mais armas, mais crimes, em uma confirmação dos resultados da literatura científica internacional.

Ilustrando o ponto, o gráfico abaixo apresenta a evolução das taxas de homicídio cometidas com o uso de armas de fogo e por outros meios, além da proporção de homicídios por armas de fogo em relação ao total, entre 1983 a 2023, ou seja: cobrindo o período de duas décadas antes e depois do ED.

Quatro pontos podem ser observados nesse gráfico. Em primeiro lugar: nas duas décadas anteriores ao ano de 2003, a proporção de homicídios por armas de fogo aumentou paulatinamente até se estabilizar em torno de 70%, a partir daquele ano. Em segundo lugar: a taxa de homicídio por armas de fogo aumentou fortemente até 2003, quando passou a apresentar aumentos residuais até 2018 e posterior diminuição. De fato, enquanto nas duas décadas anteriores ao ED a violência letal armada aumentou 302%, nas duas décadas seguintes houve redução de 25%. Terceiro lugar: os homicídios por outros meios flutuaram ao redor de uma taxa média pouco abaixo de 10 por cem mil habitantes, de 1983 até 2018. Por fim, a partir de 2018, as taxas de homicídios por armas de fogo e por outros meios diminuíram concomitantemente, mantendo a estabilidade da proporção de homicídios por armas de fogo nos mesmos 70%.

O gráfico sugere fortemente, portanto, que o aumento da violência letal nos anos 80 e 90 foi totalmente alicerçado na escalada da violência armada, mas que algo ocorreu em 2003 que ajudou a frear a escalada dos homicídios por armas de fogo ao mesmo tempo em que nada ocorreu na violência letal por outros meios, que continuou na mesma trajetória. Por outro lado, a redução de homicídios a partir de 2018 parece ter a ver com questões estruturais que afetaram todos os homicídios, por armas de fogo e por outros meios.

O que pode ter ocorrido exatamente em 2003 que freou a letalidade por armas de fogo, mas não por outros meios? As pesquisas econométricas evidenciaram a resposta: o Estatuto do Desarmamento. Da mesma forma que já passou o momento de discutir se é a cloroquina ou a vacina é que “resolve” o problema da COVID-19, duas décadas após o ED já passou, e muito, do momento de reconhecer, com base nas pesquisas científicas e evidências empíricas, que mais armas significa mais crimes. A terra é redonda.

Fonte: Elaboração do autor, com base nos dados do SIM/MS.
Referências:
[1] Santaella-Tenorio et al. (2016). What Do We Know About the Association Between Firearm Legislation and Firearm-Related Injuries? Epidemiologic Reviews.
[2] Anglemyer et al. (2014). The Accessibility of Firearms and Risk for Suicide and Homicide Victimization Among Household Members: A Systematic Review and Meta-analysis. Annals of Internal Medicine.
[3]  Branas et al. (2009). Investigating the Link Between Gun Possession and Gun Assault. American Journal of Public Health (ajph); e Lima et al. (2000). Também morre quem atira: risco de uma pessoa armada ser vítima fatal de roubo. Ibccrim.
[4] Hartung, G. C. Ensaios em demografia e criminalidade. Tese de Doutorado em Economia, EPGE/FGV, Rio de Janeiro, 2009; Cerqueira, D. R. C. Causas e consequências do crime no Brasil; Tese de Doutorado em Economia, PUC, Rio de Janeiro, 2010; e Justus, M. Uma abordagem econômica das causas da criminalidade: evidências para a cidade de São Paulo, Tese de Doutorado em Economia USP, Piracicaba, 2012.

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