O mundo do crime barriga-verde
A análise do cenário catarinense pode sugerir que os baixos índices de homicídios no estado podem ser, em parte, reflexo da governança hegemônica do PGC, o Primeiro Grupo Catarinense, que controla a violência para evitar a atenção policial, num fenômeno conhecido como "Pax Monopolista"
Lucas Starling Albuquerque Cerqueira
Mestre em Segurança Pública pela Universidade Vila Velha (UVV/ES). Policial civil em Santa Catarina. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Professor universitário da Associação Catarinense de Ensino (ACE/SC)
Santa Catarina, frequentemente aclamado como o “estado mais seguro do Brasil”, projeta uma imagem de tranquilidade e ordem. Contudo, essa narrativa esconde uma realidade subjacente de intrincada criminalidade organizada. Sob a negativa pública de autoridades estatais, uma poderosa facção, o Primeiro Grupo Catarinense (PGC), emergiu do interior do sistema prisional catarinense e se consolidou, desafiando a percepção pública e as forças governamentais. Este artigo explora a história do PGC, a dualidade entre a postura do Estado e a força da facção, sua complexa estrutura de governança e as implicações para a segurança de Santa Catarina.
Em um passado não tão distante, o cenário criminal de Santa Catarina era dominado por grandes traficantes de drogas. Figuras como Juca Galeano, nos anos 1980; Jarvis Chimenes Pavão, na década de 1990; Júlio César Wiese e João Vitório da Fonseca, o “Baga”. A partir da morte de Baga, em 2000, deflagrou-se violenta guerra pelo controle do tráfico na capital catarinense, impulsionando nomes como Sérgio de Souza, o “Neném da Costeira”.
Foi nesse contexto de mercados ilícitos e um sistema prisional precário que, em 2001, o embrião do PGC, conhecido como “O Grupo”, surgiu na Penitenciária de Florianópolis. Inspirado no modelo do Primeiro Comando da Capital (PCC) de São Paulo, o objetivo inicial era combater a opressão e as “atitudes erradas inaceitáveis no sistema carcerário”[1]. Em 3 de março de 2003, a facção foi oficialmente fundada como Primeiro Grupo Catarinense. Sua ascensão coincidiu com a inauguração da Penitenciária de São Pedro de Alcântara (SPA) em maio do mesmo ano, que rapidamente se tornou a “Torre” ou “quartel-general” da facção.
A política de administração prisional do estado, apelidada de “pau e bonde”, caracterizada pela falta de estrutura, superlotação, maus-tratos, abusos, torturas e constantes transferências arbitrárias de presos, ironicamente, serviu como um catalisador para o fortalecimento do PGC. Tais condições minaram a credibilidade das instituições públicas, conferindo à facção um papel de defensora da dignidade dos detentos. As transferências de líderes do PGC para presídios federais, embora visando à desarticulação, resultaram na expansão de suas redes e na formação de alianças estratégicas, como a selada com o Comando Vermelho (CV) do Rio de Janeiro.
Por anos, a existência do PGC foi oficialmente negada ou minimizada pelas autoridades catarinenses, num esforço para não “manchar o estado”. Apenas em novembro de 2010, em meio a uma onda de assaltos, a existência do grupo foi publicamente reconhecida pelo então secretário de Segurança Pública, que lhe atribuiu a autoria dos crimes.
A aparente paz catarinense foi abalada pelas ondas de atentados orquestradas pelo PGC no início da década de 2010. O ponto de inflexão ocorreu em novembro de 2012, após o assassinato de uma agente prisional. Em um “salve geral”, o PGC ordenou ataques a ônibus, bases policiais e veículos em várias cidades, como resposta a supostas torturas no sistema prisional. Novas ondas de violência se seguiram em 2013 e 2014, com centenas de ataques em diversas cidades e a intervenção da Força Nacional.
Outro marco foi a guerra declarada contra o PCC, a maior facção do Brasil, que escalou entre 2015 e 2018. A aliança do PGC com o Comando Vermelho e a disputa por rotas estratégicas de tráfico internacional, especialmente os portos de Itajaí e São Francisco do Sul, impulsionaram o conflito. Em 27 de junho de 2015, o PGC divulgou uma “carta aberta”, rejeitando os “batismos” do PCC em seu território e declarando guerra à “força invasora”. Esse conflito resultou nos maiores índices de homicídios da história de Santa Catarina, com cenas de extrema violência.
O Primeiro Grupo Catarinense é uma organização criminosa com uma estrutura hierárquica bem definida e um sistema normativo próprio, exercendo uma vigorosa governança criminal. A cúpula é formada por dois “Ministérios”: o 1º (membros “vitalícios”) e o 2º (membros rotativos). Abaixo, a estrutura se ramifica em quadros geográficos, nos quais os “Disciplinas” atuam como gestores regionais. Outros cargos com funções específicas garantem a operacionalidade da facção.
A “legislação” interna do PGC é detalhada em seu Estatuto, complementado por cartilhas e comunicados que regulam desde o comportamento de seus membros até as atividades criminosas. Infrações são escalonadas e julgadas em “sumários” – os “tribunais do crime”, que podem aplicar desde multas até a “exclusão com rigor”, ou seja, a pena de morte. Economicamente, o PGC é financiado por um “dízimo” mensal, pago por membros em liberdade, e um “Caixa 2” cobrado de traficantes nas “biqueiras”. Há, ainda, taxas sobre determinadas atividades e a prática da lavagem de dinheiro.
Em um aspecto “social”, o PGC busca se legitimar nas comunidades ao proibir crimes contra “pessoas desfavorecidas” (pedestres, trabalhadores, motoristas de aplicativo) e punir severamente crimes sexuais. Essas medidas visam “proteger” a população e, ao mesmo tempo, garantir a “legitimidade” da facção e reduzir a atenção policial. O presente de Santa Catarina é um mosaico de percepções contrastantes: o discurso oficial exalta a imagem do “estado mais seguro do Brasil”, enquanto a realidade do crime organizado é descrita como uma “bomba prestes a explodir”. O PGC consolidou sua hegemonia no sistema prisional. Essa dominância permite à facção ditar as regras nas prisões, segregando presos em “convívio” e “seguro” conforme filiação ou obediência.
Historicamente, a atuação do Estado em relação ao PGC foi marcada pela negação de sua existência e por respostas repressivas que, paradoxalmente, acabaram por fortalecê-lo. A transferência de líderes para presídios federais, por exemplo, embora eficaz no curto prazo, a médio e longo prazo expandiu o “network” da facção com criminosos de outras regiões.
A chave para entender essa dinâmica reside na relação simbiótica entre o PGC e o Estado. As políticas estatais de repressão e encarceramento em massa, em vez de enfraquecerem, muitas vezes fornecem ao PGC os recursos humanos e financeiros, além de oportunidades de recrutamento e formação de redes. A governança do PGC, que controla mercados ilícitos e impõe suas “leis” a criminosos e civis em áreas de pouca presença estatal, pode, inadvertidamente, contribuir para a estabilidade social. A análise do cenário pode sugerir que os baixos índices de homicídios em Santa Catarina podem ser, em parte, um reflexo da governança hegemônica do PGC, que controla a violência para evitar a atenção policial, num fenômeno conhecido como “Pax Monopolista”[2]. O PGC é uma força multifacetada, cuja história revela como ações e inações estatais e políticas repressivas podem pavimentar o caminho para o fortalecimento de um poder clandestino. A simbiose entre o crime e o Estado é inegável.
A persistência do discurso de que “em Santa Catarina, bandido não se cria” é confrontada pela realidade de que os “bandidos” catarinenses estão extremamente “criados” e organizados. Aprofundar o entendimento sobre o PGC, reconhecido como uma das principais organizações criminosas do país, exige ir além da superfície. O livro PGC: a face obscura do “estado mais seguro do Brasil”[3] , que será lançado em breve, serve como um convite e um alerta para compreender a lógica, a força e a ascensão do PGC. É um chamado urgente para repensar as políticas públicas de segurança, adotando estratégias eficientes que considerem a complexa interação entre o Estado e crime organizado. A segurança de Santa Catarina, paradoxalmente, parece equilibrar-se em um fio tênue, influenciada tanto pela ação estatal quanto pelo controle exercido pelo PGC.