Por que falamos em “políticas penais”?
A emergência de políticas não-privativas de liberdade e a urgência de concepção de formas de gerenciamento dos estabelecimentos prisionais distintas das práticas históricas de contenção e violência estrutural evidenciam o equívoco de reduzir as políticas penais ao campo da Segurança Pública
Felipe Athayde Lins de Melo
Pesquisador vinculado ao Programa de Pós-Doutorado em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos. Membro do Laboratório de Gestão de Políticas Penais
Ao longo de quase duas décadas de existência, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública se consolidou como uma das principais organizações voltadas à produção de conhecimento e de estratégias de incidência no campo da Segurança Pública. E o Fonte Segura se transformou em um importante veículo para a produção de agendas e debates em torno dessa temática. Por essa razão, não é pouco significativo que o Laboratório de Gestão de Políticas Penais mantenha há cerca de dois anos um espaço para a apresentação de ideias e práticas voltadas ao campo das políticas penais.
Neste texto procuro argumentar, ainda que brevemente, a respeito da importância da diferenciação entre esses dois campos, refletindo sobre suas interfaces e distinções, a partir de problemáticas próprias que caracterizam o campo das políticas penais.
A questão penitenciária no Brasil (Thompson, 1991; Chies, 2013) foi, ao longo de mais de dois séculos, subordinando-se às concepções e práticas da Segurança Pública, ao mesmo tempo em que as representações sobre a Justiça no campo criminal produziram um senso de equivalência entre punição e encarceramento. Não por acaso, a virada do século XX para o XXI representa um momento de forte incremento nos índices de encarceramento em todo o país, levando-nos, desde 2016, ao terceiro lugar no ranking mundial de pessoas privadas de liberdade.
Em trabalho anterior (Melo, 2018), procurei demonstrar como a gestão prisional no Brasil emergiu a partir de embates e acomodações entre aquelas duas forças (a Justiça, enquanto produção do Direito, e a Segurança Pública, enquanto estratégia de controle e de produção das violações do própria Direito), às quais viria a se somar, no limiar do século XX, a força dos grupos criminais, hoje disseminados por todo o país.
Esse processo de disputas e aproximações entre forças distintas consolidou formas de gestão dos estabelecimentos prisionais assentadas sobre a coexistência entre normas, estratégias e atores voltados à crescente garantia de direitos (à educação, ao trabalho, a assistências, etc) e práticas cada vez mais sofisticadas de sua violação (torturas psicológicas e emocionais, maus-tratos pouco identificáveis, práticas de subjetivação do medo) e permitiu a intensa expansão do aparato prisional brasileiro sob a égide do controle, da neutralização e, mais recentemente, do combate ao crime organizado.
O processo de burocratização – ou seja, de composição de corpos e normas institucionais – da administração penitenciária alcança seu mais novo ponto de inflexão com a criação da polícia penal, categoria profissional que consolida a hegemonia da perspectiva da Segurança como eixo central da gestão prisional. Encontramos aqui dois pontos de contestação que nos levam a refletir sobre a importância de “desnaturalizar” a subordinação das políticas penais à Segurança Pública, por um lado, e as simbioses criadas entre justiça, punição e prisão, por outro.
Em primeiro lugar, ainda que olhemos apenas para a prisão enquanto lócus de exercício do poder punitivo estatal, a produção do Direito acumulada ao longo de mais de dois séculos exige pensar em mecanismos que assegurem sua efetiva garantia. Não à toa, o Supremo Tribunal Federal reconheceu, em 2015, um Estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário brasileiro, apontando as massivas e permanentes violações como característica estruturante do funcionamento dos estabelecimentos prisionais e dos processos de persecução e execução penal. Por seu turno, quando observamos os parâmetros legais instituídos pela Lei de Execução Penal, torna-se evidente a necessidade de conceber os ambientes prisionais como espaços multidisciplinares, haja vista o imperativo ético e legal de oferta de políticas públicas sociais cujo planejamento e execução exigem a presença de profissionais de diferentes áreas, tais como educadores/as, psicólogos/as, assistentes sociais, dentre outros.
Sendo assim, a hegemonia historicamente construída quanto à importância dos profissionais da “segurança”, ora policiais penais, face às demais categorias de servidores, corresponde a perspectiva que subordina o acesso aos direitos às práticas de contenção.
Em segundo lugar, importa registrar que os mecanismos – legais e operativos – de responsabilização penal não se resumem à privação de liberdade, tampouco nela se encerram. Ainda que incipiente, em que pese seu histórico e seu alcance, a Política Nacional de Alternativas Penais, instituída por meio da Portaria 495/2016, aponta outras estratégias de responsabilização penal que se contrapõem ao encarceramento, estabelecendo os princípios do vínculo familiar e comunitário e da garantia dos direitos individuais e sociais como alicerces para a prevenção da violência. Mais recentemente, a adoção de dispositivos de monitoração eletrônica de pessoas também trouxe a perspectiva da responsabilização penal para além das cercas e muralhas das prisões, ainda que as críticas ao modelo vigente no país apontem novas formas de violações e violências advindas das “cercas eletrônicas” construídas pelas práticas de monitoramento de pessoas.
Além disso, os movimentos de construção de uma Política Nacional de Atenção às Pessoas Egressas do sistema prisional (Melo, 2014) trazem à tona a necessidade de investimento na formação de profissionais e na criação de serviços especializados que permitam às pessoas que deixam as prisões no Brasil a construção de trajetórias de retomada do convívio em liberdade civil. Por fim, o lançamento, pelo Conselho Nacional de Justiça, das Centrais de Regulação de Vagas, aponta para novas possibilidades de redução do encarceramento, racionalizando o uso da prisão enquanto última medida de responsabilização penal.
A emergência, portanto, destas políticas não-privativas de liberdade, bem como a urgência de concepção de formas de gerenciamento dos estabelecimentos prisionais distintas das práticas históricas de contenção e violência estrutural, evidenciam a insuficiência e o equívoco de reduzir as políticas penais ao campo da Segurança Pública. Trata-se, como vem informando a produção do Laboratório de Gestão de Políticas Penais[1], de um campo que almeja e necessita ocupar um espaço próprio no conjunto das políticas públicas, com diretrizes, serviços, orçamento e profissionais especializados, cuja formação abarque as interfaces que tais políticas mantêm não apenas com a Segurança Públicas, mas também com a Justiça e as políticas sociais. É nessa perspectiva, também, que se compreende a transformação, no atual mandato do presidente Lula, do antigo Departamento Penitenciário Nacional em Secretaria Nacional de Políticas Penais, a qual incorpora em seu bojo uma Diretoria de Cidadania e Alternativas Penais, responsável pelo fomento e coordenação das políticas não-privativas de liberdade.
Por esta razão, e considerando o escopo do Plano Pena Justa – Enfrentamento ao estado de coisas inconstitucional[2], resultante daquela decisão do STF acima mencionada, torna-se fundamental que autoridades, operadores das políticas penais, pesquisadores/as e pessoas afetadas pela Justiça Criminal reconheçam e assumam o compromisso com a interdisciplinariedade e a interinstitucionalidade do campo. Tal como não se faz um hospital apenas com médicos, nem uma escola restrita aos professores, as políticas penais exigem carreiras diversas de profissionais, bem como órgãos e serviços que não se restrinjam à gestão prisional e à política penitenciária.
O apelo fácil à segurança pública como discurso para justificar as políticas penais pouco diferencia as promessas do Plano Pena Justa – e as representações públicas das principais lideranças à frente dele – do que historicamente foi realizado no Brasil. Fugir dessa armadilha pode ser a oportunidade para, efetivamente, superarmos o Estado de coisas inconstitucional.