O enfrentamento da violência de gênero como desafio à formação policial continuada
O enfrentamento à violência de gênero requer coragem institucional para que se reconheça o peso do machismo estrutural, abertura para o diálogo com o feminismo e prudência para evitar que se caia em extremismos que aprofundam divisões
Juliana Lemes
Doutora em Política Social pela UFF, presidente do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e cabo da Polícia Militar de Minas Gerais
A qualificação de policiais para o atendimento de situações que envolvem violência de gênero enfrenta diversos obstáculos. O primeiro deles diz respeito ao impacto que a própria palavra “gênero” provoca. Se, por um lado, nomear determinados tipos de violência é fundamental para orientar estratégias de enfrentamento, por outro, essa nomeação pode gerar resistências e até repulsa em determinados grupos sociais.
Em tempos de intensa polarização político-ideológica, esse desafio se torna ainda mais complexo. A incorporação de temas socialmente sensíveis na formação continuada de policiais sofre com duas barreiras principais: a resistência ideológica, que dificulta a compreensão do problema, e a limitação do debate público, que enfraquece a reflexão sobre a importância de nomear e conceituar tais questões. O termo “gênero” remete às relações sociais historicamente construídas entre homens e mulheres, indicando que não é possível compreender um sem estudar o outro.
Nesse sentido, a violência de gênero deve ser entendida como expressão das relações de poder e dos papéis socialmente atribuídos ao masculino e ao feminino. Mais do que uma terminologia, trata-se de uma chave interpretativa que permite compreender as violências que atingem as mulheres pelo simples fato de serem mulheres, o que está, inclusive, na raiz de crimes como o feminicídio íntimo.
O enfrentamento à violência de gênero é, portanto, um dos maiores desafios contemporâneos para as instituições de segurança pública. Trata-se de uma problemática complexa, marcada por raízes culturais, históricas e estruturais, que exige do Estado não apenas respostas imediatas, mas também estratégias preventivas capazes de romper ciclos de silenciamento, desigualdade e revitimização. Nesse cenário, a formação policial continuada emerge como elemento central, ao colocar os profissionais de segurança diante da necessidade permanente de atualização de saberes, práticas e posturas éticas — condição indispensável ao enfrentamento do fenômeno.
A atuação policial em casos de violência de gênero não se restringe à aplicação da lei. Requer sensibilidade, acolhimento e compreensão da dimensão humana presente em cada ocorrência. Muitas vezes, a forma como a vítima é recebida e escutada determina sua decisão de prosseguir ou não com a denúncia. Por isso, uma formação centrada apenas no domínio técnico-operacional mostra-se insuficiente: é imprescindível incorporar uma perspectiva de gênero e de direitos humanos como eixo transversal do aprendizado e da prática policial.
Contudo, o debate sobre gênero e violência não ocorre em um vácuo social. Ele é atravessado por tensões ideológicas marcadas por diferentes correntes de pensamento. De um lado, o feminismo — em suas múltiplas vertentes — combinado ao movimento de mulheres, teve papel fundamental na denúncia das desigualdades históricas entre homens e mulheres em nível global, além de impulsionar, no Brasil, marcos legais como a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio. De outro, setores conservadores interpretam algumas pautas feministas como radicais ou incompatíveis com tradições culturais, associando-as a uma suposta ameaça à ordem social e à família como instituição.
Nesse contexto, o conceito de machismo estrutural ganha destaque. Ele revela que a violência de gênero não decorre apenas de atos isolados e/ou individuais, mas de um sistema que naturaliza desigualdades, legitima estereótipos e silencia vítimas. A polícia, enquanto instituição que reflete e reproduz dinâmicas sociais, também está sujeita a esse fenômeno. Daí a relevância da formação continuada como instrumento para desconstruir práticas discriminatórias e consolidar uma atuação orientada, sobretudo, pelo princípio da equidade.
O desafio se intensifica no cenário atual de polarização ideológica. Nesse ambiente, a formação policial – quando não já imersa –, corre o risco de se tornar palco de disputas ideológicas, em vez de consolidar-se como espaço de construção coletiva de conhecimento. O caminho mais promissor é investir em metodologias de ensino que estimulem o pensamento crítico, a empatia e a escuta ativa, de modo que o foco permaneça na proteção às vítimas e na prevenção das violências. Não se trata de impor uma visão única, mas de assegurar que o respeito aos direitos humanos, a dignidade e a equidade de gênero sejam pilares inegociáveis da atuação policial.
Em que pese a implementação de estratégias que objetivam responder a essa lacuna, na prática, a teoria é outra. O discurso se perde em meio aos espaços de ideias e posturas engessadas, que resistem a novas metodologias e visões de mundo. A transformação dessa realidade pode se tornar possível com a introdução de formas de comunicação adaptadas à linguagem do destinatário final.
A substituição de termos não necessariamente implica a dissolução da ideia central de determinado conteúdo. E pode, sem dúvida, produzir o efeito desejado. O olhar de certos grupos sobre termos e movimentos associados aos conceitos como gênero, feminismo e machismo, exige o emprego de cada um deles com reservas.
O enfrentamento à violência de gênero exige mais do que técnicas operacionais. Requer coragem institucional para reconhecer o peso do machismo estrutural, abertura para dialogar com o feminismo como movimento social transformador e prudência para evitar cair em extremismos que aprofundam divisões. O desafio da formação policial continuada é, assim, duplo: preparar profissionais para agir com eficiência técnica e sensibilidade social, ao mesmo tempo em que promove um ambiente de aprendizado capaz de resistir à polarização e priorizar a missão maior da segurança pública — a defesa da vida e da cidadania.