Da infância ao silêncio: um retrato da violência sexual no Brasil em 2024*
Em números absolutos, foram registradas 87.545 vítimas no Brasil em 2024, o maior volume desde 2011, ano em que se inicia a série histórica acompanhada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Beatriz Schroeder
Pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e Graduada em Administração Pública pela FGV-SP
Isabella Matosinhos
Pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Manoela Miklos
Pesquisadora Sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e Doutora em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNICAMP, UNESP, PUC-SP)
Melissa Londres
Estagiária no Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e Graduanda em Ciência Política na LSE
A seção de violência sexual do Anuário Brasileiro de Segurança Pública reafirma, anualmente, uma realidade alarmante: os crimes sexuais seguem sendo uma constante no Brasil. Nesta edição não é diferente. No ano de 2024, foi registrado o maior número de estupro e estupro de vulnerável da história do país, com 87.545 vítimas – mais do que o dobro do registrado em 2011. O crescimento, entretanto, não se limita apenas a esses dois crimes.
Entre os 11 indicadores relacionados à violência sexual monitorados nesta edição, sete apresentaram crescimento nas taxas de registro em relação a 2023: estupro (ambos os sexos), estupro de vulnerável (ambos os sexos), estupro total (incluindo o estupro de vulnerável) (ambos os sexos), estupro de mulheres, assédio sexual, importunação sexual, pornografia, sendo este último o de crescimento mais expressivo, de 13,1%. Os demais crimes – tentativa de estupro, estupro de vulnerável, estupro de vulnerável com vítimas mulheres e exploração sexual – apresentaram queda, apesar dos números absolutos de casos registrados seguirem preocupantes. Assim, o cenário é de agravamento generalizado, exigindo atenção redobrada das políticas públicas e do sistema de justiça.
Além da análise dos crimes acima, este texto detalha, para o ano de 2024, o perfil das vítimas de estupro e estupro de vulnerável e o contexto da agressão. Apesar dos avanços em políticas públicas e do fortalecimento das redes de proteção, os números de estupro e demais formas de violência sexual seguem altos, sem que haja, até o momento, soluções eficazes para contê-los. Este é um problema cujo enfrentamento necessariamente exige uma combinação de estratégias que vão desde a prevenção – com uma educação que possibilite às pessoas, desde a infância, reconhecer um ato de abuso sexual de fato como violência – até a garantia de investigação qualificada, maior celeridade nos processos judiciais e a efetiva responsabilização dos agressores.
Para compreender a definição legal de estupro, é preciso partir de dois conceitos fundamentais: conjunção carnal e ato libidinoso. A conjunção carnal refere-se à penetração vaginal, enquanto o chamado “ato libidinoso” abrange qualquer ação de natureza sexual voltada à satisfação do desejo sexual, com ou sem contato físico. Tal ação foi incorporada à definição legal de estupro em 2009.[1] Assim, desde então, o crime de estupro é legalmente definido como a prática da conjunção carnal ou ato libidinoso, mediante violência ou grave ameaça. No Brasil, em 2024, foram registrados 20.350 casos assim, o que corresponde a 9,6 estupros por grupo de 100 mil pessoas, um aumento de 0,8% em relação a 2023.
Outra modalidade de estupro, parecida, mas ainda mais cruel, é o estupro de vulnerável. Em termos de conduta, a definição é a mesma do estupro – envolvendo conjunção carnal ou ato libidinoso. A diferença é que o art. 217-A do Código Penal, que o disciplina, não prevê que tais atos, para que o crime esteja configurado, aconteçam mediante violência e grave ameaça. E isso ocorre por conta da condição específica da vítima desse crime: menores de 14 anos ou pessoas que, por enfermidade, deficiência intelectual ou qualquer outra causa, não possam oferecer consentimento ou resistência. Assim, enquanto o estupro (art. 213) se caracteriza por um ato praticado com violência ou grave ameaça, o estupro de vulnerável está fundamentado na incapacidade da vítima de consentir. Nesses casos, o ato sexual é considerado criminoso independentemente do uso de força física ou coação, justamente porque a vítima – por sua condição – não possui discernimento suficiente para consentir de forma válida. No ano de 2024, foram registrados 67.204 casos de estupro de vulnerável no país, um número mais de três vezes maior do que o estupro do art. 213. Em outras palavras, foram 31,6 casos por grupo de 100 mil habitantes, o que representa um crescimento de 1% em relação a 2023.
O fato de o estupro e estupro de vulnerável comporem o núcleo central das estatísticas de violência sexual não se deve apenas ao volume de registros, mas à sua centralidade simbólica na lógica de dominação sexual e de controle dos corpos. O estupro é o tipo penal que mais claramente expressa o atravessamento entre violência de gênero e poder sexual, sendo compreendido por autoras como Heleieth Saffioti (2001)[2] como forma extrema de reafirmação da ordem patriarcal. Além disso, o estupro, sobretudo o de vulnerável, também se destaca por seu caráter relacional: frequentemente, os autores são familiares, conhecidos ou pessoas próximas, o que reforça a ideia de que esses crimes não derivam apenas de impulsos individuais, mas de estruturas sociais permissivas e de desigualdades consolidadas.
Ainda que parte das vítimas dos crimes de estupro seja do sexo masculino – em 2024, foram 7,5% dos estupros e 13,8% dos estupros de vulnerável -, o crime permanece atravessado por relações de poder, dominação e gênero. Isso porque, mesmo nos casos em que a vítima não é do sexo feminino, a prática do estupro reproduz lógicas de humilhação, violação e exercício de controle sobre corpos percebidos como vulneráveis. É possível, ainda, que esse percentual masculino esteja subdimensionado, considerando as barreiras sociais e simbólicas que dificultam a denúncia por meninos e homens. Nesse sentido, o estupro não é apenas um ato sexual forçado, mas uma estratégia de imposição de força que opera dentro de uma cultura ainda fortemente hierarquizada em termos de gênero, raça, idade e autoridade.
Para ilustrar a desigualdade de gênero neste crime: em 2024, a taxa de estupro de vítimas mulheres foi 1,8 vezes maior do que a taxa geral de estupro (que considera vítimas de ambos os sexos); no caso específico do estupro de vulnerável, embora mais de 11 mil vítimas do sexo masculino tenham sido registradas ao longo do ano, o número de meninas vítimas desse crime chega quase a 56 mil. Isso significa que, para cada menino vítima de estupro de vulnerável em 2024, houve cinco meninas vitimadas. Considerando a taxa de estupro total (incluindo estupro de vulnerável), a taxa de vítimas do sexo feminino é 1,8 vezes superior à taxa de ambos os sexos. Essa comparação entre os sexos é relevante porque deixa em evidência o impacto desproporcional da violência sexual sobre meninas e mulheres desde a infância.
De todo modo, juntos, estupro e estupro de vulnerável, chamados aqui de Estupro Total, alcançaram em 2024 uma taxa de 41,2 casos por grupo de 100 mil habitantes, um crescimento de 0,9% em relação ao ano anterior. Em números absolutos, foram registradas 87.545 vítimas no Brasil em 2024, o maior volume desde o início da série histórica acompanhada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2011. O gráfico abaixo expõe a evolução desse aumento.

Nesse contexto, um fator que não pode ficar de fora da discussão é a subnotificação, dado que estudos têm indicado que no Brasil o número real de casos de estupro supera os registrados pelas polícias.[3] E isso porque muitos casos de violência sexual – especialmente os que envolvem crianças, adolescentes e pessoas em situação de vulnerabilidade – não chegam ao conhecimento das autoridades. Assim, o aumento na quantidade de estupros registrados anualmente pode, em parte, ser interpretado como um aumento na disposição das vítimas (ou de seus responsáveis) em denunciar. No entanto, ainda que um maior nível de notificação possa contribuir para essa elevação, o fato de mais de 87 mil casos serem oficialmente registrados por ano – e o fato de 76,8% desse total representarem estupros de vulnerável – revela a dimensão e a persistência da violência sexual.

Em se tratando de violências e crimes, considerar a existência da subnotificação é necessário para a compreensão de que as estatísticas oficiais não dão conta de mensurar a criminalidade de forma precisa. Além do mais, a magnitude da subnotificação varia a depender do tipo de crime, e, no caso da violência de gênero e da violência sexual, estamos falando de contextos nos quais, tradicionalmente, a subnotificação tende a ser mais elevada, visto que as múltiplas camadas de vulnerabilidade, estigma e silêncio tornam ainda mais complexo o problema. Duas dessas complexidades estão no próprio reconhecimento de que houve violência e no desafio de reunir provas consideradas legítimas pelos órgãos de justiça.
Essa opacidade se torna ainda mais evidente no caso da tentativa de estupro. Isso porque, se a própria consciência da violência sexual consumada já é, muitas vezes, difícil de ser elaborada pela vítima, no caso da tentativa esse limiar torna-se ainda mais sutil. Muitas mulheres e meninas, por exemplo, hesitam em nomear a situação vivida como uma tentativa de estupro, especialmente quando a agressão é interrompida antes de qualquer contato físico direto. Quando o fazem, uma segunda camada de dificuldade é o reconhecimento da violência e do crime pelo próprio aparato policial e, na sequência, pela justiça. Com isso, além de impactar negativamente as estatísticas, essa forma de violência acaba sendo social e institucionalmente invisibilizada.
Tendo esse contexto como pano de fundo, em 2024 foram registradas 5.176 vítimas de tentativa de estupro no Brasil. É um número 17 vezes menor do que o total de registros de vítimas de estupros consumados no mesmo ano, correspondendo a uma taxa de 2,9 casos por 100 mil habitantes. Os dados também indicam uma queda de 3,9%, em relação a 2023, variação que merece uma leitura crítica, já que, como exposto, parte disso pode vir de uma menor disposição das vítimas em tornarem público o que aconteceu e fazerem a denúncia.
* Este texto foi originalmente publicado na 19ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A íntegra do documento pode ser acessada em https://publicacoes.forumseguranca.org.br/handle/123456789/279