Inimputáveis são eles. Loucas somos nós
Não podemos aceitar que o sofrimento psíquico – um problema sério e real – seja banalizado ou instrumentalizado como álibi para a violência de gênero. Ao relativizar a responsabilidade dos agressores, corre-se o risco de reforçar a impunidade e de tornar a insanidade uma espécie de salvo-conduto para o feminicídio
Lara Amorim Secco
Mestra em Ciências Criminais pela PUCRS. Pós-graduanda em Direito Penal e Processo Penal, e em Direitos das Mulheres. Atua como professora universitária e advogada
Em um intervalo de apenas três dias, dois casos brutais de violência contra a mulher chocaram o país. Em 26 de julho, em Natal (RN), uma mulher foi espancada com 61 socos pelo então namorado. Poucos dias depois, em Alegrete (RS), uma jovem foi assassinada com 127 facadas. Embora a data oficial do crime conste como 29 de julho, o corpo da vítima só foi encontrado dois dias depois.
Ambos os casos têm traços em comum que não podem ser ignorados: os agressores eram companheiros das vítimas e, após os crimes, alegaram sofrer de transtornos psiquiátricos.
Historicamente, o estigma da loucura sempre recaiu sobre nós, mulheres. Desde as antigas instituições, como os conventos e os hospícios, até as formas mais sutis de silenciamento contemporâneo, a patologização da mulher tem sido uma constante.
Mais do que um rótulo clínico, a loucura tornou-se um marcador simbólico de gênero. Independentemente da classe, da raça ou da orientação sexual, toda mulher, em algum momento da vida, será alvo do adjetivo “louca”, um termo carregado de desprezo e deslegitimação, usado para desqualificar sua fala, suas emoções e sua presença no mundo. A associação entre ser mulher e estar fora da razão foi naturalizada a tal ponto que, muitas vezes, passa despercebida no cotidiano. Tornou-se uma forma sutil, e profundamente enraizada, de controle social.
Entretanto, nos últimos anos, observa-se uma inversão inquietante: homens que cometem violências extremas contra mulheres vêm recorrendo, cada vez com mais frequência, ao discurso da insanidade como tentativa de esquiva penal. A alegação de que o agressor “estava em surto” no momento do crime tornou-se um expediente jurídico recorrente para pleitear a semi-imputabilidade ou inimputabilidade.
Nos termos do artigo 26 do Código Penal, é considerado inimputável aquele que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, for inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato. Já a semi-imputabilidade, prevista no parágrafo único do mesmo artigo, admite a redução de pena quando a capacidade de entendimento estiver apenas parcialmente comprometida.
Embora faltem dados consolidados – o que exigiria uma pesquisa de caráter empírico, com metodologia quantitativa e qualitativa –, é notório que a narrativa da doença mental tem sido mobilizada com frequência crescente como tentativa de atenuar a responsabilização penal de agressores.
Esse uso indiscriminado de alegações psiquiátricas em tribunais não apenas banaliza os transtornos mentais reais, como também reforça estigmas sociais extremamente danosos. Cria-se a falsa associação entre transtorno mental e periculosidade, perpetuando a ideia equivocada de que pessoas com sofrimento psíquico são, em essência, agressivas ou violentas.
Essa distorção contribui para o preconceito e o isolamento de quem vive com transtornos mentais, dificultando ainda mais o acesso a tratamento, acolhimento e dignidade. Utilizar o sofrimento psíquico como cortina de fumaça para o feminicídio é não apenas injusto com as vítimas da violência de gênero, mas também com as pessoas que verdadeiramente enfrentam transtornos mentais em suas vidas cotidianas.
Esse debate também precisa ser contextualizado à luz da Reforma Psiquiátrica brasileira, iniciada com a Lei nº 10.216/2001, que promoveu uma virada paradigmática no tratamento de pessoas com transtornos mentais, priorizando o cuidado em liberdade e a substituição progressiva dos antigos “manicômios judiciários”.
Os chamados “manicômios judiciários”, espaços de custódia destinados a pessoas com transtornos mentais acusadas ou condenadas por crimes, estão em processo de extinção, com a transição para modelos de responsabilização que não impliquem internação compulsória em instituições manicomiais.
Essa transição, embora positiva do ponto de vista dos direitos humanos e da dignidade das pessoas com sofrimento psíquico, levanta uma questão sensível: para alguns autores de violência de gênero, que alegam transtornos mentais, cumprir medida de segurança fora dos antigos manicômios pode ser mais vantajoso.
Assim, a alegação de inimputabilidade pode acabar funcionando como uma estratégia de fuga ao rigor da pena, esvaziando a função punitiva do Estado e colocando em risco a credibilidade do sistema de justiça. Portanto, insistir na tese de transtorno psiquiátrico como saída para casos de feminicídio cometidos por agressores que alegam doença mental representa um duplo retrocesso: ignora os avanços da reforma psiquiátrica e legitima um privilégio indevido frente à gravidade do crime.
De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no Anuário Brasileiro de Segurança Pública publicado neste ano, com os dados referentes a 2024, ao menos quatro mulheres, por dia, morreram vítimas de feminicídio no Brasil. Foram 1.492 mulheres, sendo esse o maior número observado desde que a Lei do Feminicídio entrou em vigor, em 2015.
O perfil das vítimas: negras (63,6%), jovens (de 18 a 44 anos, que representam 70,5% das vítimas), assassinadas dentro de casa (64,3%), por seus companheiros ou ex-companheiros (79,8%), que utilizam arma branca (48,4%) ou arma de fogo (23,6%) como instrumento do crime.
Em 2024, 60,7% dos registros indicam que os agressores eram companheiros da vítima, e 19,1% eram ex-companheiros. Destaca-se que os dados apontados pelo FBSP dizem respeito apenas aos casos oficialmente notificados – permanecendo invisível a chamada cifra oculta, ou seja, os casos que não chegam às autoridades.
É preciso dizer com clareza: machismo, misoginia e violência de gênero não são doenças. São práticas enraizadas em uma estrutura social patriarcal que naturaliza a dominação masculina e banaliza a dor feminina.
Ainda que, em alguns casos, haja diagnóstico psiquiátrico real, cabe perguntar: por que esses homens não estavam em tratamento? Por que o cuidado com a saúde mental só é mencionado depois do crime, como justificativa para o injustificável?
Não podemos aceitar que o sofrimento psíquico – um problema sério e real – seja banalizado ou instrumentalizado como álibi para a violência de gênero. Ao relativizar a responsabilidade dos agressores, corre-se o risco de reforçar a impunidade e de tornar a insanidade uma espécie de salvo-conduto para o feminicídio.
É urgente que o sistema de justiça, especialmente na interface entre saúde mental e direito penal, pare de hesitar diante da brutalidade e assegure que transtornos não sirvam de cortina de fumaça para o feminicídio. Enquanto isso, o sangue derramado continua sendo o nosso.