Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025 06/08/2025

Os caminhos trilhados pelos celulares roubados e furtados: o exemplo de São Paulo*

Esses crimes ganharam escala quase industrial, com logísticas de transporte e redes de receptação distribuídas estrategicamente nos principais pontos onde os criminosos operam

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Guaracy Mingardi

Doutor em Ciência Política e associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Dado que os aparelhos celulares, sobretudo depois da pandemia de Covid-19, em 2020, passaram a mediar quase todos os aspectos da vida das pessoas, o interesse dos criminosos por esse equipamento passou a ditar a dinâmica da criminalidade no país, com especial destaque nos grandes centros urbanos. Os dados da 19ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram, por exemplo, que o estado de São Paulo responde, sozinho, por 31,4% de todos os aparelhos celulares roubados e furtados em 2024; sua capital, por 18,5%, embora concentre 5,6% da população nacional. Ou seja, praticamente um quinto de todos os furtos/roubos de aparelhos celulares se dá na cidade de São Paulo. Por esse motivo, vale descrever o que acontece com os aparelhos físicos depois que os criminosos fazem suas vítimas.

Existem pelo menos dois caminhos conhecidos para os celulares roubados: venda local e no exterior do hardware do equipamento ou desmonte e comercialização de suas peças em lojas e assistências técnicas irregulares. Antes, porém, o primeiro passo, e talvez o mais lucrativo, é tentar esvaziar a conta bancária do proprietário e/ou roubar informações e identidades que possam ser exploradas em golpes, fraudes e pedidos de resgate de contas de “influenciadores” digitais com grande número de seguidores. A gama de possibilidades de monetização criminosa do uso de celulares furtados ou roubados é cada vez maior e mais diversificada.

Para isso, uma forma de fazê-lo depende da habilidade do ladrão para manter o aparelho desbloqueado e trocar rapidamente a senha. Quando o aparelho é pego bloqueado, entram em ação os experts que algumas quadrilhas mais organizadas mantêm e o seu valor de mercado pode ser menor, a depender da marca.

Normalmente quem pratica o roubo ou furto não tem conhecimento para extrair dados dos aparelhos e seu interesse é basicamente o de passá-lo para a frente, ganhando dinheiro do receptador. O caso do latrocínio do ciclista Vitor Medrado, próximo ao parque do Povo, em bairro nobre da cidade de São Paulo, expôs essa dinâmica: os dois criminosos atiraram contra Vitor para roubar seu celular, sem que ele reagisse ao roubo. Os aparelhos e demais itens roubados pelos criminosos foram levados para uma criminosa que atuava como receptadora, mas também fornecia armamento, capacetes e mochilas de entrega para os criminosos, que normalmente praticam esse tipo de crime usando motocicletas.[1] Assim, o criminoso da ponta é apenas o elo visível e mais fraco de uma linha de produção estruturada e que se beneficia da dificuldade de se fazer investigação criminal no Brasil.

Os roubos e furtos de celular deixaram de ser uma atividade isolada e, como esse mesmo Anuário indica em suas tabelas e outras análises, passou a ter escala quase industrial, com logísticas de transporte e redes de receptação distribuídas estrategicamente nos principais pontos onde os criminosos operam. Uma vez com o aparelho celular em mãos, rapidamente os criminosos responsáveis pelos roubos e furtos se desfazem do equipamento e os entregam a receptadores, quase que todos associados ou integrantes de organizações criminosas como o PCC.

Esgotadas as opções de golpes possíveis por meio da utilização fraudulenta desses equipamentos, o hardware/equipamento físico segue a linha de produção criminal e chega a outras quadrilhas especializadas. Segundo entrevistados, sendo possível desbloquear os celulares, eles serão vendidos inteiros, seja no país ou no exterior. Mas muitos serão desmontados e suas peças comercializadas em lojinhas de rua/galerias, seja através da internet ou balcão. Quase sempre essas lojas tendem a manter os estoques pequenos, nunca com mais de uma peça do mesmo tipo. Quando a fiscalização ocorre, é necessário que haja uma nota que justifique cada peça armazenada.

Um fenômeno interessante é que as peças dos aparelhos mais novos não têm tanta saída, já que as partes (a tela é a mais vendida) estão disponíveis e, apesar de custarem mais, possuem locais de venda oficiais ou semioficiais. Já para os que não estão mais no mercado, a situação é outra. Segundo lojistas, quando a peça é vendida como similar, tem boa probabilidade de ser legítima; quando ela é original, no entanto, é provável que seja fruto de delito. Marcas ou modelos não mais comercializados no país não têm estoques legítimos, e as empresas nem se interessam por repô-los. Portanto, quem compra uma peça dessas tem grande chance de lidar com mercadoria ilícita. Para se ter uma ideia do volume dessa prática, uma operação da polícia civil no início de 2025 apreendeu mais de 8 mil aparelhos roubados distribuídos em várias lojinhas e armazéns no centro da cidade de São Paulo.

O segundo modus operandi dos receptadores é a venda para o exterior. Existem quadrilhas especializadas em exportar celulares, principalmente mais novos e de melhor qualidade. Em São Paulo, os destinos mais conhecidos, embora não os únicos, são países dos continentes africano e asiático. Os receptadores seriam alguns indivíduos pertencentes às colônias desses países na capital, que se concentra nos bairros de Santa Cecília e República. Entre os imigrantes legítimos se escondem alguns receptadores que mantêm contatos no país de origem. Esse modelo de se esconder no meio de conterrâneos é comum, e já foi observado muitas vezes. Um exemplo são os mafiosos italianos que operavam em Nova York nos anos 20 e 30 do século passado.

Um dos principais pontos de atuação desses grupos em São Paulo é a região da Rua Guaianases, não muito distante da Cracolândia, no Centro. Lá foram presos vários receptadores, vários deles imigrantes, e apreendidas dezenas de celulares. As quadrilhas de celulares aproveitam o fato de a Rua Guaianases ser uma rua do Centro da cidade de fácil acesso, mas com diversos prédios irregulares e cortiços, dificultando a exata localização das unidades utilizadas pelos receptadores e o trabalho da polícia.

Há pelo menos uma década o problema é conhecido. Várias outras ações do tipo têm cada vez mais celulares apreendidos. Uma das mais noticiadas, porém, resultou em uma apreensão relativamente pequena de aparelhos. Em uma operação da PM, ocorrida em abril de 2024, em que foram apreendidos apenas 44 celulares, um senegalês tentou fugir e caiu do beiral do prédio, morrendo na queda. Apesar de alguns frequentadores do local alegarem que o indivíduo teria sido jogado pela polícia, informantes da região nos confirmaram que ele se desequilibrou e caiu durante a fuga.

Para os que trabalham nos bares da Guaianases e proximidades, e conhecem os receptadores detidos, as ações espetaculares têm um significado reduzido. Contam que alguns não ficam detidos por muito tempo. Um detalhe mencionado foi de que vários endereços locais do início da rua sabidamente abrigavam criminosos. Mencionaram que um dos detidos era chamado pelos comparsas de Sheik. E teria sido preso mais de uma vez. Segundo outros relatos, eles teriam alguns “Sheiks”, inclusive um ainda na África, que seria o chefão.

Seu modelo de atuação é simples: compram dos ladrões por uma fração do preço de fábrica (normalmente entre 10% e 15%), negociam com outras quadrilhas especializadas na invasão e uso para golpes e, posteriormente, armazenam a res furtiva até acertarem com os “importadores”. A mercadoria segue para o exterior de duas formas distintas: dentro de equipamentos eletrônicos em contêineres, ou via aérea, em remessas de dezenas de peças, normalmente enviadas como cargas não acompanhadas. O motivo disso é que algumas vezes elas foram apreendidas, e os contrabandistas presos. Um caso emblemático ocorreu em fevereiro de 2020, quando a Polícia Civil prendeu nove pessoas que tentavam embarcar para o Senegal com 550 celulares.

O destino desses carregamentos varia bastante, mas quase todos são enviados para a África e Ásia. A condição para esses carregamentos é a capacidade de as organizações criminosas conseguirem espaço em mercados de países cujas redes de telecomunicações não monitoram adequadamente o IMEI (International Mobile Equipment Identity), um número único e padronizado no mundo de 15 ou 17 dígitos que identifica cada aparelho celular produzido. Em países como Senegal, Nigéria, Gana, Índia e China, é comum que não haja fiscalização e checagem do IMEI, de modo que os equipamentos roubados em outros países acabando sendo habilitados.

Quanto ao contrabando via container, através de entrevistas ficou estabelecido que até esse momento não foi apreendida no Porto de Santos nenhuma carga importante. Apesar disso, informantes da região da Guaianases afirmaram que isso ocorre. As possibilidades são duas: uma delas seria que os “exportadores” teriam encontrado meios de camuflar suas cargas, ou então embarcam em portos menos vigiados.

Uma das perguntas mais frequentes a respeito desse crime é se ele tem ligação com organizações criminosas locais, o que evidentemente ocorre. O exemplo paulista parece apontar no sentido de existir um “acordo de cavalheiros” entre o PCC e os africanos envolvidos no crime. Esse acordo, segundo dois investigadores especializados, envolveria uma permissão para atuar, desde que sejam respeitados os limites estabelecidos pelo Primeiro Comando da Capital e algumas contribuições para a organização. Mas é importante lembrarmos que, nessa etapa da linha de produção criminosa, os aparelhos já passaram por quadrilhas especializadas na invasão e exploração de informações pessoais e bancárias das vítimas, essas mais direta ou indiretamente associadas ao PCC.

 

[1] Suedna Barbosa foi presa pela Polícia Civil em Paraisópolis, zona sul da capital, acusada de ser a líder da quadrilha responsável por inúmeros roubos e latrocínios, além de atuar como receptadora de celulares e joias.

 

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