Juliana Brandão
Doutora em Direitos Humanos pela USP e pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Macunaíma não tinha nenhum caráter. A inferiorização moral e estética do homem negro – é só lembrarmos que, ao mergulhar nas águas, o herói se transforma em um homem loiro e de olhos azuis – é retratada, com humor, numa linha tênue entre a crítica social e o racismo.
Já Mussum atravessou gerações. Foi pela piada que materializou a figura do malandro, invariavelmente bêbado, cujo fenótipo era sempre motivo de deboche. As múltiplas dimensões que se sobrepõem nesse personagem alcançaram sua vida pessoal – para muitos, Antônio Carlos Bernardes Gomes morreu de cirrose. Na verdade, foi vitimado por complicações decorrentes de um transplante de coração.
Nessa linha, quando o humor racista faz vítimas, não se trata de uma brincadeira ou mesmo de um mal-entendido. E aqui situo o racismo recreativo, termo cunhado por Adilson Moreira. Essa manifestação discriminatória é a que permite a disseminação de hostilidades raciais, em concomitância com o discurso de ausência de racismo. Habilmente vai se remodelando – o que, não tenhamos dúvida, ainda tem lugar na sociedade brasileira – a ideia da cordialidade racial.
O Judiciário tem se debruçado sobre os casos de injúria racial – agora equiparada ao racismo. Recentemente, inclusive, tivemos uma condenação envolvendo a figura de Leo Lins. Com público fiel e cativo, apesar da pena de oito anos de reclusão por disseminar discursos discriminatórios, o pretenso humorista segue destilando ódio e fazendo troça da ação estatal.
Houve sim quem, dentro do cenário artístico, tenha repudiado a desvirtuação da comédia produzida por Lins. Pois é certo que o humor é sim transgressor em sua essência, mas deve guardar harmonia com os direitos fundamentais. Contudo, paradoxalmente, não foram poucas as vozes que se insurgiram contra a judicialização do caso e se colocaram em completo desacordo com a resposta estatal. Ilustra isso a fala pública de uma comediante que disse “não passar pano para racista”, embora considere que “prender por piada não dá.”
Fato é que, quando lidamos com os recortes raciais, ser o que se é acaba por ser um privilégio. A negritude, ou melhor, quanto mais dela nos afastamos é o que autoriza os contornos evidentes dos que são dignos de humanidade. Aqui é bom ter presente que tanto a condenação judicial que mencionei quanto o desconforto com essa mesma estão localizados em pessoas brancas.
Uma das engrenagens mais eficazes do racismo é a naturalização da desigualdade. Talvez por isso seja tão confortável invisibilizar insultos racistas, em uma estratégia que tem sido primorosa em confundir os limites da liberdade de expressão. Nessa régua de humanidade, o velho ditado assume outra roupagem. Parece mesmo que alguns peixes vão passar ilesos aos perigos de morrerem pela boca.