Segurança no Mundo 07/05/2025

Cocaína em alta: dinâmicas do tráfico e seus efeitos da América Latina à Europa

É urgente fortalecer o controle portuário no Brasil, expandir a cooperação internacional e estruturar inteligência financeira e institucional capaz de conter os efeitos do mercado europeu que, embora distante, impõe desafios concretos e crescentes à nossa segurança nacional

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Ariadne Natal

Doutora em Sociologia, Pesquisadora Associada do Peace Research Institute Frankfurt (PRIF) e do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), Associada Plena do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Nos últimos anos, a Europa tem testemunhado uma escalada na disponibilidade de cocaína, consolidando a droga como a segunda substância ilícita mais consumida no continente, atrás apenas da cannabis. O European Drug Report 2024, publicado pela European Union Drug Agency, confirma uma tendência observada há mais de uma década: além do recorde de 323 toneladas apreendidas em 2022, intensificaram-se também os impactos sobre a saúde pública, a violência urbana e os sistemas de controle ao tráfico.

Esse crescimento levanta uma questão central para as políticas de drogas e segurança pública: o que os números realmente revelam e quais são suas implicações? Dados complementares deixam claro que o aumento das apreensões não reflete apenas a maior eficácia das agências de segurança, mas sobretudo uma maior disponibilidade da substância. Indicadores indiretos — como pesquisas populacionais de consumo, traços de cocaína nas águas residuais e registros hospitalares — confirmam o aumento do consumo, inclusive entre populações vulneráveis e em cidades que antes estavam fora do radar.

Fatores geopolíticos e transformações no mercado global de drogas ajudam a explicar esse cenário. Com o mercado norte-americano mais saturado e suas rotas altamente vigiadas, redes criminosas latino-americanas buscam aumentar a diversificação e direcionar parte de sua produção para a Europa. Além disso, a queda na produção de ópio no Afeganistão após a proibição do cultivo de papoula pelo Talibã reduziu a oferta de heroína, abrindo espaço para a cocaína, inclusive entre usuários de drogas injetáveis. A droga também se tornou mais acessível devido ao seu alto grau de pureza e ao preço estável, ampliando sua presença em diferentes estratos sociais.

Diante dessa pressão crescente, os mecanismos de controle e repressão na Europa foram fortalecidos. Houve aumento de operações policiais, investimentos em escaneamento de cargas, intercâmbio de inteligência entre países e cooperação internacional inclusive com os países de origem. Ainda assim, o crime organizado reagiu com sofisticação: rotas alternativas foram ativadas, cargas lícitas passaram a ser quimicamente contaminadas ocultando a droga e laboratórios de refino foram instalados dentro do próprio continente — o que evidencia a adaptação estrutural dessas redes.

Nesse contexto, a Alemanha desponta como um estudo de caso representativo das novas dinâmicas do tráfico europeu. Embora não fosse, historicamente, um dos principais países de apreensão, registrou em 2023 o maior volume de sua história: 43 toneladas de cocaína, com o Porto de Hamburgo como principal ponto de entrada, de acordo com informações do Bundeskriminalamt (Departamento Federal de Polícia Criminal da Alemanha – BKA). Maior porto comercial da Alemanha e terceiro da Europa, Hamburgo tornou-se alvo das redes criminosas que buscam diversificar rotas para escapar do maior controle nos portos ibéricos e holandeses.

A droga apreendida em solo alemão provém, sobretudo, de Colômbia, Equador e do Brasil, que se consolidou como corredor logístico das remessas sul-americanas. A cocaína transita por regiões da Amazônia — próximas aos centros produtores — e pelo Sudeste brasileiro, onde se aproveita da infraestrutura portuária e do comércio com a Europa. Portos como Santos e Paranaguá figuram com frequência em investigações internacionais. No entanto, do outro lado da remessa, os grupos responsáveis pela logística e distribuição na Europa são, em sua maioria, europeus — alemães, albaneses, turcos, italianos e holandeses. Os latino-americanos vendem a cocaína no atacado, mas não participam das etapas finais da distribuição, como ocorre nos Estados Unidos, por exemplo.

A crescente oferta e o consumo na Europa não resultaram, até o momento, em um aumento proporcional dos homicídios. No entanto, os efeitos colaterais são significativos: há registros de corrupção de funcionários portuários, ameaças, disputas entre grupos criminosos e sobrecarga dos serviços públicos. Esses impactos, embora menos visíveis que a violência letal, comprometem a governança urbana e a resiliência institucional em pontos estratégicos.

Diante desse panorama, compreender a engrenagem transnacional da economia da cocaína é fundamental — não apenas para a Europa, mas também para os países latino-americanos envolvidos na cadeia logística. O crescimento da demanda europeia alimenta a intensificação da atividade criminosa ao longo de toda a rota, incentivando a produção, o armazenamento e o escoamento da droga em países como o Brasil. Isso pressiona regiões de fronteira, amplia a competição entre facções, compromete estruturas portuárias e eleva os riscos de corrupção institucional.

Nesse sentido, a resposta brasileira precisa articular segurança pública, diplomacia e política criminal. Não basta investir apenas em repressão. É urgente fortalecer o controle portuário, expandir a cooperação internacional e estruturar inteligência financeira e institucional capaz de conter os efeitos de um mercado que, embora distante geograficamente, impõe desafios concretos e crescentes à nossa segurança nacional.

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