Gilvan Gomes da Silva
1º Sargento da Polícia Militar do Distrito Federal, doutor em Sociologia, professor do Instituto Superior de Ciências Policiais (PMDF) e pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança (UnB)
Nas atividades de segurança pública e privada a morte é tida como um componente profissional no Brasil. Floriano Cathalá Neto analisou, na edição anterior do Fonte Segura, o triste acidente que ceifou a vida de três policiais rodoviários federais no dia 18 de abril de 2025. A guarnição da Polícia Rodoviária Federal acompanhava motociclistas que estavam sem capacete e fugiram de uma bllitz e, por haver ondulações no asfalto, a viatura saltou e bateu em um terceiro veículo. Três dos quatro policiais faleceram no acidente. Outro policial rodoviário e três pessoas que estavam no outro veículo ficaram feridos.
Com precisão, Neto destaca que o culto ao heroísmo e ao ato de bravura como um componente da cultura organizacional, que para fins didáticos chamarei como cultura policial nestas próximas linhas, é um fomento para a exposição policial aos riscos e à morte, sendo necessária sua substituição pelo compromisso com a própria vida e da população.
Como uma tentativa de colaborar com o debate, colocarei de forma simplificada algumas características da cultura policial em que o risco extremo ou até mesmo a morte na segurança pública é o ápice de um fato complexo com causas múltiplas e com diversas consequências na cultura policial e a mudança desse marco também é complexa.
Primeiramente, deve-se destacar a militarização da segurança pública, mesmo por mimetismo de modelo de unidades especializadas ou nos cursos profissionais nas instituições civis. A socialização militar formal nas Polícias Militares e informal nas Polícias Civis, na Polícia Rodoviária Federal e nas Guardas Municipais é uma característica que aumenta a homogeneização, dificultando o contraditório, conservando as práticas constituídas e a rigidez tradicional. Outro ponto é que, por ser instituição militar, ou por influência da militarização, o processo de socialização profissional conduz para a constituição de profissionais altruístas, até potencialmente suicidas altruístas, em uma perspectiva durkheimiana.
Neste sentido, o risco e seus desdobramento na atividade policial, inclusive os ritos que celebram o enfrentamento, é um dos elementos constitutivos e constituintes da cultura policial brasileira. Desta forma, o risco de morrer, a prisão ou a morte do outro são elementos constitutivos e constituintes do ser. Vivenciar o risco é ser policial, sentir-se responsável é ser policial, resolver é obrigação policial.
Por uma perspectiva cultural, o risco e a morte compõem dimensões cognitivas, simbólicas e estruturais imbricadas. Isso é, fazem parte do que dá sentido, representa e organiza o cotidiano institucional moldado em um processo cultural, mas também sócio-histórico, político e econômico. São componentes que auxiliam na “leitura do mundo”, indicam ações e explicam e justificam interpretações cotidianas. Compõem o “feeling e/ou tirocínio policial. No imaginário policial nenhuma ocorrência é somente de trânsito, assim, a desobediência à ordem de parada “é um sinal de que há outras possíveis condutas criminosas escamoteadas pela possível fuga” e o infrator já rompeu o “contrato com a sociedade” e já é punível.
Por esta cultura policial, o perigo para si e para a sociedade deve ser mitigado o mais rápido possível, independente dos recursos disponíveis e até mesmo do grau de risco iminente para si, para o perpetrador da infração ou até para terceiros. Assim, a partir desta lógica, até mesmo a menor infração cometida pode ser um risco à sociedade e se considera que pode se tornar um risco maior. Por conseguinte, o agente perpetrador do dano causador do risco deve ser considerado o maior dos riscos e cessado imediatamente, independentemente do grau do risco inicial. Por isso, em uma associação a partir do trágico acidente, pode-se interpretar que a lógica do acompanhamento e a “energia utilizada” para cessar os motociclistas infratores de trânsito não eram percebidas como infratores administrativos, mas potenciais criminosos, suspeitos, perturbadores da ordem social, entre outras qualificações construídas pelas instituições mantenedoras da ordem.
Pontos como “risco injustificado” ou “expor a vida” têm outras conotações quando percebidos a partir do prisma cultural ou, como diria Laraia, com os óculos da cultura policial, que nos faz refletir sobre “Expor a vida a risco sem justificativa”. O segundo desdobramento, além da potencialidade do risco, é a percepção da “ofensa à sociedade”. Assim, quaisquer ações, sejam administrativas ou criminais, são percebidas como uma ofensa às instituições e à sociedade. Passar sem capacete frente a blitz, desobedecer a ordem de parada, roubar um celular, entre outras ações, são percebidas pelo dano propriamente dito (perigo no transito, subtração do patrimônio, por exemplo) e o dano à instituição (representados pelos agentes na blitz) ou à sociedade (uma norma social desobedecida).
Esse era o discurso presente na cerimônia de despedida do policial militar que morreu em um acidente na BR-070 em situação semelhante. Como Cathalá Neto destacou, acidentes de trânsito são comuns durante o serviço policial, alguns fatais. Em 2016, na BR-070 houve um acidente de trânsito após o acompanhamento de um veículo roubado e uma viatura bateu em um poste, capotando em seguida. O motorista da viatura faleceu. No cortejo, em meio às mesmas indagações que Neto indicou sobre a justificativa para arriscar a vida por um veículo, por um celular ou por qualquer outro objeto, era unânime nas falas que a ação policial era desenvolvida para recuperar o bem e para “dar uma resposta” à sociedade, entre outras afirmações que destacavam a moral e as regras sociais como os bens a preservar.
Cabe destacar ainda que a construção institucional da imagem do Herói está em um contexto de precarização de condições de trabalho, com insegurança acerca de ações cotidianas mínimas por ausência de protocolos fundamentados jurídica e cientificamente; com ausência de conhecimento científico que fundamente o mínimo de equipamentos de proteção individual e coletiva e ausência de integração sistêmica entre as instituições; e construindo a percepção de isolamento e de responsabilidade solitária pela manutenção da ordem.
Nesse contexto, a do Herói seria uma das poucas recompensas nesta Loucura do Trabalho, como poderia interpretar Christophe Dejours se analisasse as condições do trabalho policial e as consequências à saúde integral (física, mental e social), sendo que poderia chegar a conclusões que as condições são fatais, se não pelos eventos abruptos de acidentes de trânsito, intervenções armadas, entre outras, masmpela constante morte cotidiana do corpo, da mente e da vida social, resultando em uma expectativa de vida menor do que a da população local em quase dez anos, com destaque para o crescente aumento do suicídio policial.
Portanto, refletir em uma lógica de trabalho diferente é refundar as instituições policiais, o que a curto e médio prazo é improvável. Todavia, há formas de mitigar esse processo a médio prazo: “Desmilitarizar” as instituições é um passo importante para pensar em outros processos de formação e socialização profissional, substituindo a lógica de combate para a manutenção da ordem social pela manutenção do estado de direito e a integração sistêmica como elementos orientadores profissionais; assim como fomentar a cientificidade como fundamentação das ações e operações policiais, alterando o tradicional “tirocínio” para a racionalidade de protocolos institucionais, modificando a forma de interpretar e explicar as relações sociais próprias da segurança pública; e fomentar a construção do saber científico policial e de segurança pública para orientar condições de trabalho, estimulando treinamento contínuo e atualização profissional para automatizar procedimentos e repensar protocolos.
Desta forma, devem ser construídas intervenções para a prevenção das mortes abruptas e naturalizadas, como destacou Floriano Cathalá Neto. Todavia, acrescento que também é necessário consolidar intervenções para os adoecimentos e mortes paulatinos, que reduzem a vida social, depois a saúde mental e, por fim, a morte física por ocorrência, por autoextermínio ou por consequência das más condições físicas anteriores, próprias da cultura policial, que estão naturalizadas, mas sem romantismo e reconhecimento.