Juliana Brandão
Doutora em Direitos Humanos pela USP e pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
É lindo de ouvir e maravilhoso de ver a potência dos versos de Gilberto Gil. Ter o privilégio de viver ao mesmo tempo desse ícone da cultura brasileira potencializa nossa capacidade de refletir sobre temas que nos exigem, para além da abertura para o debate, um pouco mais de coragem para a mudança de paradigmas, na qual tanto apostamos.
Nessa linha, enegrecer a discussão, como já propôs Sueli Carneiro, trazendo para o feminismo a centralidade que a questão racial assume quando lidamos com a caracterização da violência contra as mulheres negras, precisa estar entre os requisitos de uma cena política comprometida com o debate antirracista. Do mesmo modo, mostrar a negritude e a cultura negra a partir da referência do que é belo, do que resiste em meio às adversidades e mesmo a despeito delas, é imperioso.
Assim é que vejo, no tempo e no espaço de Gil, que navega em todos sentidos a possibilidade de nos inspirarmos e de nos deslocarmos para o lugar do território, na contemporaneidade. E esse deslocamento é físico, mas também sociopolítico. Desse modo, podemos situar a escola e a rua como espaços do cotidiano, que importam muito para o enfrentamento ao racismo. Entretanto, nossa insistência em disfarçar o racismo óbvio, aquele entranhado nas estruturas e instituições, que tem justamente tomado assento nesses espaços, apenas esvazia nossa capacidade de resistência. Aqui trago dois casos recentes que justamente nos colocam esse ponto.
Em um shopping, situado em área nobre da capital paulistana, sem qualquer titubeio, a abordagem se deu no que, aos olhos desavisados, pode parecer tão só “parte do procedimento”. O segurança se dirigiu a uma adolescente branca para lhe perguntar “se estava sendo incomodada”. O que não é um detalhe é o fato de ela estar acompanhada de outros dois colegas adolescentes – ambos negros. Ironia da situação foi ainda a circunstância de que todos esses adolescentes estavam vindo da escola – de elite, inclusive – após terem tido uma aula voltada a problematizar condutas antirracistas.
Já na Região Metropolitana de Salvador, uma mulher negra, trabalhando como baiana de receptivo, foi acusada de furto por uma turista estrangeira, após essa mesma, juntamente com o companheiro, ter pedido para tirar uma foto. A turista, ao procurar a carteira para fazer o pagamento, não a localizou na bolsa. O que se seguiu a partir daí não é só infame, como criminoso – a trabalhadora foi acusada de furto da carteira e obrigada a tirar as próprias vestes. Ao final, a carteira foi localizada – em uma loja de roupas pela qual a turista passara antes. À trabalhadora restou a proposta, em dinheiro, para que não registrasse a ocorrência. A vítima não aceitou.
A verdade é que as dinâmicas das relações raciais inscritas na formação social brasileira têm tratado como sucessivos mal-entendidos os rotineiros casos de racismo. O ódio que estimula a discriminação e nega tratamento equitativo tem sido desconsiderado, apesar dos dados do último Anuário de Segurança Pública (FBSP, 2024) nos dizerem que os casos de racismo registraram um aumento de 77,9% em 2023.
Como disse Gil, “Só quem sabe onde é Luanda saberá lhe dar valor”. É incontornável nos voltarmos aos desdobramentos de uma sociedade mais permeável ao debate racial, é certo, porém ainda recalcitrante quanto às implicações de se colocar como antirracista. A capilaridade e adesão à construção de um coletivo pautado pela não discriminação exige uma mudança sobre o que valorizamos e, assim, legitimamos como indispensável na luta por igualdade racial.
É esse o motivo pelo qual a construção de uma política antirracista do Estado Brasileiro precisa considerar normas repressivas ao racismo, porém precisa ir além delas. Assumir as intersecções que tornam a população negra mais vulnerável à violência passa por investir em ações planejadas que promovam a igualdade, enfrentem as disparidades de renda, envolvam a educação formal e informal, convoquem a atuação em rede, entre outros, da cultura, da saúde, da assistência social e tomem a segurança pública como um direito fundamental.
Temos então um bom ponto para pensar. O mesmo Brasil que tem se mobilizado e se deixado emocionar para celebrar o legado e a trajetória de Gil é aquele que prossegue reiteradamente assistindo, em parte incrédulo e, em outra, inerte, ao racismo a olhos nus. Nos dois lados há um ponto em comum – ainda não foi feita a ponte entre os que sabem e os que não sabem (e talvez se recusem a saber) onde é Luanda.