O que seria um policiamento sensível a gênero?
Delegacias, batalhões e patrulhamentos exclusivos para as mulheres podem não ser suficientes quando ainda persistem nas corporações culturas e rotinas incapazes de analisar violências decorrentes da condição do sexo feminino
Alexandre Pereira da Rocha
Doutor em Ciências Sociais. Policial civil no Distrito Federal. Associado do FBSP. Professor substituto no IPOL/UNB
Nos serviços públicos está ganhando destaque a perspectiva sensível a gênero, como, por exemplo, no âmbito orçamentário[i]. Em linhas gerais, ações públicas sensíveis a gênero consideram as diferenças entre homens e mulheres. Assim, são promovidas medidas que enfrentem desigualdades decorrentes do gênero. Nesse debate, observa-se que o gênero está sujeito a vários fatores, logo dada vulnerabilidade pode estar alinhavada a outras. Por exemplo, no caso de violência contra mulheres, o evento pode concorrer com outros fatores de risco aos quais elas estão submetidas, o que exige um policiamento capaz de enxergar os matizes dos conflitos. Diante disso, o que seria um policiamento sensível a gênero?
Dados sobre a criminalidade apontam as diferenças entre homens e mulheres, com a propensão de elas serem mais vitimadas. Verifica-se que, a depender do tipo de crime, elas são as vítimas preferenciais. Por exemplo, em 2021, no Distrito Federal, nos crimes de estupro, importunação sexual e perseguição (stalking), as mulheres perfizeram 90% das vítimas. Essa tendência se observa noutros tipos de crimes, mesmo naqueles não necessariamente caracterizados pelo sexismo. Por exemplo, no roubo a transeunte elas são 47,9% das vítimas. Por outr0 lado, na condição de autoria, em geral, elas figuraram em 20% dos casos[ii].
Em crimes próprios da condição feminina, como os previstos na Lei Maria da Penha, na Capital Federal, em média, são registradas 20 mil ocorrências ao ano, o que demonstra que a referida norma descortinou abusos e agressões que ficavam submersos no âmbito doméstico. Por outro lado, mesmo nas situações domésticas em que o crime possa ser praticado contra vítima de qualquer gênero, homem ou mulher, como é o caso da lesão corporal do artigo 129, § 9 do Código Penal, elas são as mais agredidas. Desse modo, dados do Distrito Federal demonstram que, a cada dez registros de lesão corporal de violência doméstica, as mulheres foram vítimas em oito casos[iii].
Os dados apresentados não pretendem reforçar o estigma da mulher como sexo frágil. Na verdade, os dados sugerem que a mulher é vitimada não por uma suposta fragilidade, mas por ordenamentos que as expõem a mais riscos do que os homens. Ou seja, as mulheres tendem a ser mais vitimadas não por que são as partes mais frágeis, mas por que as dinâmicas da violência as atingem de modo distinto. Isso é vulnerabilidade, não fragilidade. Com efeito, é bem provável que violências contra as mulheres sejam as provas mais visíveis da persistência do patriarcado e da misoginia nas relações humanas.
Para mitigar esse problema, hoje é comum verificar polícias com unidades específicas para o atendimento a mulheres. Delegacias de atendimento a mulheres e patrulhas Maria da Penha, por exemplo, já são realidades em boa parte das corporações brasileiras. O objetivo dessas unidades é dar atendimento prioritário aos casos de violência doméstica e amparar as mulheres com os instrumentos legais possíveis. Outras medidas reforçam a recepção especializada às mulheres, como protocolos em casos de feminicídio e crimes sexuais. Com isso, de modo geral, tem-se buscado avistar as particularidades da condição feminina frente à criminalidade e evitar a revitimização no âmbito policial.
O estabelecimento de unidades policiais voltadas ao atendimento da mulher vítima é salutar, seja de modo material ou simbólico; afinal, isso demonstra o comprometimento das corporações em lidar com a problemática. Todavia, além de espaços físicos, é preciso que a concepção do policiamento seja efetivamente sensível à questão do gênero. Para tanto, isso implica que a compreensão e o tratamento da violência contra as mulheres sejam vistos com outras lentes. Ora, o gênero aqui não é um detalhe, pois pode ser mesmo a questão determinante.
Por isso, policiamento sensível a gênero é mais do que ostentar unidades especializadas; estruturalmente, ele é uma concepção decorrente da perspectiva do gênero. Isso se justifica não só pelo fato de mulheres serem vitimadas, mas também pela situação de que os variados delitos podem ser também violência de gênero. Soma-se a isso misoginia, um ódio deliberado contra mulheres, o que potencializa a condição de vulnerabilidade.
O policiamento sensível a gênero seria composto de ações preventivas a procedimentos investigativos, com policiais formados e capacitados para lidarem com o fato de que a condição do sexo feminino pode ser a razão do delito. Daí um policiamento atento às questões de gênero deve ser capaz de vislumbrar a dimensão do gênero com transversalidade e a interseccionalidade. Portanto, um desempenho sob a perspectiva de gênero muda a visão acerca das atividades de policiamento e de sua necessidade de criar condições para o enfretamento da violência contra as mulheres.
Com efeito, da mesma forma que o arcabouço teórico sobre orçamento sensível à questão do gênero não visa à produção de um orçamento exclusivo para as mulheres[iv], o policiamento sensível a gênero não deve se limitar à criação de estruturas separadas para contemplar as mulheres vitimadas. Assim, delegacias, batalhões e patrulhamentos exclusivos para as mulheres podem não ser suficientes quando ainda persistem nas corporações culturas e rotinas incapazes de analisar violências decorrentes da condição do sexo feminino.
Por isso, um policiamento sensível a gênero é desafio tal qual em outras áreas do poder público que visam atacar as diferenças entre homens e mulheres. Vale destacar que há avanços significativos em várias corporações brasileiras, com instalações e protocolos voltados às mulheres. Porém, isso ainda não é um policiamento sensível às questões de gênero. Afinal, um policiamento nesses termos sugere análise de gênero em aspectos profundos dos procedimentos policiais, logo é algo mais amplo assentado em valores e práticas cidadãs direcionadas ao enfrentamento de preconceitos de gênero.