Múltiplas Vozes 23/04/2025

A prática policial e o custo do heroísmo: reflexões sobre acidentes de trânsito em serviço

A morte de policiais não pode continuar a ser romantizada como ato de bravura ou decorrência natural da profissão. É necessário romper a lógica do heroísmo e substituir o culto à exposição ao perigo pelo compromisso com a vida do policial e da população

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Floriano Cathalá L. Neto

Mestrando em Segurança, Desenvolvimento e Defesa (ESD), especialista em Altos Estudos de Defesa (ESD) e em Transparencia, Accountability y Lucha Contra la Corrupción (U. de Chile) e em Direito Militar (UNEB)

A atividade policial é, por natureza, uma atividade de risco. No entanto, alguns casos demonstram que, por vezes, os próprios policiais exasperam o risco a que estão expostos, sem justificativa para tal, o que é aceito e até fomentado pelas corporações. Parece ser o caso do acidente envolvendo policiais rodoviários federais no último dia 18 (Henrique e Pontes, 2025). Numa perseguição a motociclistas sem capacete que furaram barreira policial, o condutor de viatura da PRF perdeu o controle do carro, que colidiu com outro e capotou várias vezes. Testemunhas relataram que quatro policiais foram arremessados da viatura, o que sugere o não uso do cinto de segurança. Mais do que levar ao luto e à solidariedade com as famílias e colegas, o caso é ilustrativo de algo que demanda reflexão: três PRFs morreram; outro PRF e três civis sofreram ferimentos por causa de meras infrações de trânsito, puníveis apenas com multa e apreensão dos veículos.

Os riscos da profissão policial não decorrem apenas do enfrentamento à criminalidade, mas também de uma cultura organizacional que glorifica a força e a morte heroica e que marginaliza a prudência e a correta aplicação das técnicas policiais, comumente tachadas como “medo”. Para Mello (2021), o risco inerente à atividade policial pode (e deve) ser mitigado pela atitude do policial, por meio de equipamentos de proteção (como o cinto de segurança), pela prudência e pela adoção de comportamentos seguros. No entanto, diversos estudos indicam que a cultura organizacional empurra os policiais na direção oposta, a da exposição desmedida ao risco, como ilustrado até nas canções institucionais: “ser policial é, sobretudo, uma razão de ser, é enfrentar a morte, mostrar-se um forte no que acontecer” (Canção da PMERJ); e “(…) para os campos da morte marchando, nós iremos sem mágoa ou pesar (…) e até mesmo que a morte nos caiba, saberemos com honra morrer, de maneira que a pátria bem saiba que cumprimos o nosso dever” (Canção da PMDF).

Nesse contexto, Mattos (2012) detalhou a exaltação de policiais que se expõem ao risco e revelou os rótulos que policiais colam nos colegas durante a construção de suas identidades, delineando a oposição entre os “vibradores” e os “encagaçados”, como se evitar riscos desnecessários fosse sinônimo de covardia. Lustosa e Gonçalves (2017) reafirmam essa ode à coragem irresponsável ao apontarem que a ênfase dada pela corporação à prontidão e à infalibilidade pode levar os policiais à exposição a situações perigosas, mesmo quando desnecessário, buscando atender a uma imagem idealizada de um super-homem.

O acidente que vitimou os três PRFs e essa síndrome de super-herói me trouxeram à lembrança um dos momentos mais tristes de minha passagem pela PMDF: era véspera de natal de 2000, quando fui acionado para atender a um acidente de trânsito no centro de Brasília. No local, duas viaturas da PCDF avançaram o sinal fechado em altíssima velocidade, porém um ônibus cruzou a via (com sinal verde para si) colidiu com as viaturas. Dois policiais morreram instantaneamente e um terceiro, no dia seguinte. Outros tiveram ferimentos graves e ao menos um deles acabou aposentado em decorrência das lesões. O motivo daquele deslocamento urgentíssimo? Apoiar colegas a 24 quilômetros de distância, no presídio da Papuda, onde já havia efetivos da própria PCDF, à época encarregada da custódia prisional, e da PMDF, encarregada da guarda externa do presídio (o acidente ocorreu com menos de 6Km percorridos). Urgente? Talvez. Valia a pena colocar em risco as próprias vidas e as de terceiros? É de se refletir a respeito. Por mais que a profissão nos acostume a lidar com a morte, é sempre muito doloroso vê-la alcançar irmãos de armas. O quadro piora quando se presenciam outros colegas e até familiares chegarem ao local e verem seus entes queridos destroçados na tentativa de corresponder às expectativas que a corporação, erroneamente, deposita sobre eles. Após 25 anos, pouco se aprendeu, pouco mudou e casos semelhantes continuam vitimando policiais.

Embora não haja dados nacionalmente consolidados, existem estudos esparsos a confirmar o acidente de trânsito como uma das principais causas de mortes de policiais em serviço, quando não a principal. Na galeria de mortos em serviço da PCDF, dos 46 policiais que perderam a vida em ação de 1960 a 2025, 19 morreram em acidentes de trânsito (41,3% do total), maior causa de fatalidades em serviço na PCDF. Na Brigada Militar do RS, de 2006 a 2016, o índice é semelhante, 41% (Limeira e Donato, 2019). No âmbito da PRF, a maior incidência de mortes de policiais em serviço, de 2001 a 2020, deveu-se a acidentes de trânsito, com 28,7% das ocorrências (Marins et. al, 2022). No RJ, de 1994 a 1996, 20,4% das mortes de policiais em serviço decorreram de acidentes de trânsito, segunda causa mais frequente (Souza e Minayo, 2005).

Mello (2021) aponta três causas como como as principais: i. a não utilização do cinto de segurança, o que é generalizado e publicamente admitido entre policiais, além de negligenciado pelos comandos; ii. a manutenção inadequada das viaturas e das vias; e iii. a falta de treinamento para as condições especialíssimas em que viaturas policiais são conduzidas. A esses fatores, com amparo nos estudos mencionados, agregamos e apontamos como, talvez, a principal causa, iv. a cultura organizacional das polícias, que leva o policial a se expor a riscos desnecessários e evitáveis, em nome de um heroísmo fantasioso.

Nesse contexto, casos como o da PRF e tantos outros que têm se tornado cotidianos nas polícias não são meras fatalidades, mas o reflexo trágico de uma cultura institucional que precisa ser mais bem estudada e repensada. A morte de policiais não pode continuar a ser romantizada como ato de bravura ou decorrência natural da profissão. É necessário romper a lógica do heroísmo e substituir o culto à exposição ao perigo pelo compromisso com a vida – a do policial e a da população. Isso implica fomentar estudos, revisar práticas operacionais, investir em treinamento, mas, sobretudo, impõe desconstruir a naturalização da morte como parte integrante do ofício. Ser policial exige, sim, coragem, mas ser operacional e vibrador exige, sobretudo, retornar vivo e íntegro ao final do turno de serviço para que se possa, nos dias e anos seguintes, prosseguir no cumprimento de tão essencial função pública.

 

REFERÊNCIAS
DE SOUZA E. R.; MINAYO, M. C. de S. Policial, risco como profissão: morbimortalidade vinculada ao trabalho. Revista Ciência e Saúde Coletiva. 2005, v. 10, n. 4.
HENRIQUE, V.; PONTES, B. Três policiais morrem após viatura da PRF colidir com carro de passeio durante perseguição a motociclistas na Zona Norte do Rio. G1. Rio de Janeiro, 18/4/2025, disponível em https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2025/04/18/viatura-da-prf-colidie-carro-de-passeio-durante-perseguicao.ghtml . Acessado em 21/4/2025.
LIMEIRA M. L. C.; DONATO, R. S. Analise dos acidentes de trânsito com morte de policial militar em serviço na Brigada Militar – de 2006 a 2016. Revista Produto & Produção. 2019, v. 20, n. 2.
LUSTOSA, D. B. S.; GONÇALVES, H. J. Psicologia na Polícia Militar: desafios do âmbito da cultura organizacional. Revista de Psicologia: saúde mental e segurança pública. 2017. v. 3, p. 35-50.
MARINS E. F.; FERREIRA, R. W.; FREITAS F. C.; DUTRA G. F. A. A.; VASCONCELOS JUNIOR, J. R.; CAPUTO, E. L. Mortalidade em agentes da Polícia Rodoviária Federal: série temporal entre 2001 e 2020. Revista Saúde Pública. 2022; v. 56, p. 82.
MATTOS, M. J. da S. Reconhecimento, identidade e trabalho sujo na PMDF. 2012. 187 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – UnB, Brasília, 2012.
MELLO, C. M. de A. A morte como hipótese de trabalho: a percepção dos riscos profissionais pelo policial militar nas diferentes regiões do Estado do Pará. 2021. 139 f. Tese (Doutorado em Ciências do Desenvolvimento Socioambiental). UFPA, Belém, 2021.
PCDF. Galeria Policiais Mortos em Serviço. Disponível em https://www.pcdf.df.gov.br/unidades-policiais/escola-superior/galeria-policiais-mortos-em-servico . Acessado em 21/4/2025.

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