Apelido “CLT” e o que ainda há para dizer sobre o racismo
Quando o perfil dos encarcerados no Brasil é majoritariamente composto por pessoas negras, perfazendo 69,1% do total, e apenas 19,7% dos presos trabalham, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, ficamos frente a frente com a evidência de que continuam frágeis as políticas públicas oferecidas para a (re)inserção social
Juliana Brandão
Doutora em Direitos Humanos pela USP e pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Não faz muito tempo que tivemos notícia de um caso de bullying, no qual o centro da ofensa, dirigida a uma criança negra de 9 anos, girava em torno do trabalho formal. “Ser CLT” se transformou em mote para humilhação. Aos olhos apressados e que naturalizam a desigualdade, pode ter parecido tão só mais uma “brincadeira infantil” nesse “mundo que está ficando muito chato”. No entanto, vemos nesse episódio da vida real todos os contornos da precarização das relações de trabalho – baixo salário, jornada exaustiva e ocupação desprestigiada.
No caso em questão, a “contratação”, segundo uma folha de anotações de uma Carteira de Trabalho e Previdência Social desenhada pelos autores da ofensa, se deu no cargo de pedreiro civil, com salário de 50,25 “CRS” por ano e jornada de trabalho de 18 horas por dia.
O desprezo pelo trabalho e também pela lógica dos direitos vem de longe. A longevidade do processo de escravização é prova disso. Trabalhar é castigo. Dignidade tem preço.
Isso ganha ares dramáticos e fica bem distante da expectativa de se alcançar a dignidade humana, no assunto trabalho e sistema prisional. Quando o perfil dos encarcerados no Brasil é majoritariamente composto por pessoas negras, perfazendo 69,1% do total, e apenas 19,7% dos presos trabalham (Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2024), ficamos frente a frente com a evidência de que seguem frágeis as políticas públicas oferecidas para a (re)inserção social.
Além disso, a saída do cárcere, ao contrário de dinamizar a recolocação profissional, arrasta o estigma da prisão para fora dela. Não raro os egressos da prisão são tidos como inaptos às vagas de trabalho, o que alimenta a narrativa equivocada de que sobram vagas e faltam candidatos.
O alvará de soltura não altera automaticamente os laços sociais. Uma vez rompidos, hão de ser reconstruídos ou, por vezes, até mesmo construídos. A suposição de que os vínculos de pertencimento estão localizados no campo dos esforços individuais é sinal de uma leitura que consente com a permanência e perpetuação da exclusão.
E onde o racismo se situa nessa lógica? Na ausência de políticas públicas focalizadas nesse público atravessado pelas imbricações raciais, toma-se como uma causalidade algo que é derivado de uma decisão. A negação de direitos joga os egressos à própria sorte, fazendo crer que o insucesso na retomada dos projetos de vida é derivado do fracasso individual. Na verdade, estamos lidando com reflexos diretos de um sistemático apagamento da atuação do Estado, que abre espaço para suportes das famílias, das comunidades religiosas e, sim, do crime organizado. Paradoxalmente, a reentrada no sistema prisional também figura como possibilidade.
Nesse sentido, o FBSP publicizou o levantamento realizado sobre políticas públicas direcionadas para pessoas egressas do sistema prisional, abarcando relatório de visita de campo a cinco estados brasileiros: Espírito Santo, São Paulo, Maranhão, Minas Gerais e Tocantins. Mirando na mensuração de atividades de trabalho e renda, o objetivo da pesquisa “Como mensurar: a reinserção social por meio de atividades de trabalho e geração de renda de pessoas egressas do sistema penitenciário no Brasil” foi analisar iniciativas concretas voltadas às pessoas egressas e quais relações se estabelecem, a partir daí, no campo da reinserção social. Esse debate se conecta com as propostas do Plano Pena Justa, homologado em dezembro de 2024 pelo STF. No recorte dos egressos, entre as mais de 300 metas previstas, há um eixo especificamente voltado para esse público.
Desvelar essas engrenagens pode orientar ações que nos levem para uma pauta pública que, de fato, seja inclusiva e antirracista, no cenário das políticas de trabalho e renda, incluindo o sistema prisional. Isso porque, para além das boas intenções, mudanças estruturais exigem estratégia e métodos. Se estamos falhando, já na infância, na tradução dos valores que realmente importam, quando lidamos com o mundo do trabalho, eis aí mais uma oportunidade de realinharmos a rota. O desafio não é pequeno, mas está em curso.