Múltiplas Vozes 17/04/2025

A PEC da Segurança Pública e a constitucionalização do status quo

A mudança no texto da Constituição Federal mantém a autonomia dos estados para definirem suas políticas locais de controle da criminalidade, apenas destacando a obrigação de o governo federal assumir responsabilidades nessa seara das políticas públicas

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Luis Flavio Sapori

Professor da PUC-MG e associado sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

O governo Lula finalmente enviou ao Congresso Nacional a tão esperada Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da segurança pública.  O debate público acerca de seu conteúdo já começou, polarizando, como esperado, governistas e oposicionistas. De acordo com a deputada federal Adriana Accorsi (PT-GO), que faz parte da Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados, “com a PEC da Segurança Pública, a União passa a ter competência para estabelecer diretrizes nacionais claras e unificadas, respeitando a autonomia dos estados, mas garantindo a necessária integração das forças policiais em todo o território nacional para combater a criminalidade com muito mais eficiência, cooperação e inteligência.”[1]  Já o deputado Alberto Fraga (PL-DF), um dos líderes da bancada da bala, tem feito críticas contundentes ao projeto, argumentando que  “eles (governo) querem criar uma superpolícia com a União, tirando atribuições das PMs e colocando guardas municipais na Constituição” ou mesmo que “aí vem a usurpação de poder, quebrando o pacto federativo. Quando eles colocam que é a União que faz o plano nacional, os estados vão fazer o quê?”[2].

Ambas as análises pecam quanto à devida compreensão dos eventuais avanços ou retrocessos contidos na PEC da Segurança Pública. Não estamos diante de profunda inovação do arranjo institucional da segurança pública no Brasil no sentido da garantia da integração das forças policiais em todo o país como também não estamos diante do risco de plena federalização da política de controle da criminalidade com a suposta retirada de prerrogativas dos governos estaduais.  A PEC da Segurança Pública não constitui avanço institucional relevante nem representa risco de retrocesso nos termos dos críticos oposicionistas. Ela não incrementa a eficiência do aparato estatal no controle da criminalidade nem quebra o pacto federativo nesse setor. A PEC da Segurança Pública simplesmente constitucionaliza o que já está posto na atualidade, mantendo preferencialmente o status quo, excetuando-se pela criação da Polícia Viária Federal.

A PEC da segurança pública propõe alterações nos artigos 21, 22, 23 e 24 da Constituição Federal (CF), de modo a conferir à União a competência para estabelecer a política e o plano nacional de segurança pública e defesa social, ouvido o Conselho Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, integrado por representantes da União, dos estados, do Distrito Federal, dos municípios e da sociedade civil. Além disso, prevê que caberá ao ente federal a coordenação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP).

Tais prerrogativas atribuídas à União não significam que os Estados estarão subordinados às eventuais diretrizes e ações definidas pelo Plano Nacional de Segurança Pública. No parágrafo único do artigo 21 está afirmado que as competências da União no âmbito da segurança pública não excluem as competências comuns e concorrentes dos demais entes federativos relativas, nem restringem a subordinação das polícias militares, civis e penais e dos corpos de bombeiros militares aos governadores dos estados e do Distrito Federal.

Em outras palavras, a mudança no texto da CF mantém a autonomia dos estados para definirem suas políticas locais de controle da criminalidade, apenas destacando a obrigação do governo federal assumir responsabilidades nessa seara das políticas públicas. A destacar, por outro lado, que a Lei 13.675 de 2018 que instituiu o SUSP já previa em seu artigo 3º que compete à União estabelecer a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS) e aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios estabelecer suas respectivas políticas.  Além disso, no artigo 10⁰ da referida Lei consta a atribuição do Executivo Federal de coordenar o SUSP.

Outra suposta inovação da referida PEC envolve a melhor qualificação das guardas municipais no artigo 144 da CF. Às guardas municipais será admitido o exercício de ações de segurança urbana, inclusive o policiamento ostensivo e comunitário, respeitadas as competências dos demais órgãos do aparato policial. Nesse caso, a PEC apenas insere na Constituição decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal em fevereiro de 2025, nos seguintes termos: “é constitucional, no âmbito dos municípios, o exercício de ações de segurança urbana pelas guardas municipais, inclusive o policiamento ostensivo comunitário, respeitadas as atribuições dos demais órgãos de segurança pública previstas no artigo 144 da Constituição Federal e excluída qualquer atividade de polícia judiciária, sendo submetidas ao controle externo da atividade policial pelo Ministério Público”.

A ampliação da atribuição da Polícia Federal (PF) é também destacada pelo ministro Lewandowski como inovação da PEC, estabelecendo que cabe à PF a apuração de infrações penais que exijam repressão uniforme, como aquelas cometidas por organizações criminosas e milícias privadas. Entretanto, a atuação da PF na repressão às diversas manifestações do crime organizado já acontece há décadas, com destaque para a força-tarefa criada para tal finalidade, qual seja, a Força Integrada de Combate ao Crime Organizado (FICCO). Coordenada pela PF e com participação das polícias estaduais, a FICCO está presente em quase todos os estados brasileiros, sempre realizando operações com base no trabalho de inteligência.

Merece menção ainda a previsão do Fundo Nacional de Segurança Pública e do Fundo Penitenciário Nacional com o objetivo de garantir recursos para apoiar projetos, atividades e ações nessas áreas, em conformidade com a política nacional de segurança pública e defesa social. Nada de novo. Tais fundos federais já existem há mais de vinte anos. Foram apenas constitucionalizados.

A única inovação institucional proposta pela PEC da Segurança Pública é a substituição da Polícia Rodoviária Federal (PRF) pela Polícia Viária Federal (PVF). O artigo 144 da CF é alterado, sendo que cabe à nova polícia o patrulhamento ostensivo das rodovias, ferrovias e hidrovias federais. Ela poderá ainda ser mobilizada para auxílio às forças de segurança pública estaduais, quando isso for requerido por seus governadores.  Neste último aspecto, a PVF assume competência concorrente à da Força Nacional de Segurança Pública (FNSP).

Em suma, considerando os argumentos aqui apresentados, a PEC da Segurança Pública limita-se a inserir na CF os avanços institucionais incrementais que acumulamos nas últimas décadas no setor. Sob tal ponto de vista, não constitui importante inovação. Por outro lado, a crítica da oposição é desproposital. Não há qualquer risco de empoderamento indevido do executivo federal sobre os executivos estaduais na formulação e implementação das políticas de controle da criminalidade. Em sendo assim, não há motivo relevante para rejeição à PEC da Segurança Pública. Merece ser aprovada pelo Congresso Nacional nos termos propostos. Mas o governo Lula não tem como fazer desse instrumento jurídico sua principal contribuição na segurança pública. A simples constitucionalização do SUSP não vai alterar a situação de insegurança na qual vivemos. Continuamos a depender de uma política pública efetiva.

 

REFERÊNCIAS
[1] https://expresso360.com.br/adriana-accorsi-considera-pec-da-seguranca-publica-importante-avanco-para-um-sistema-mais-eficiente-humano-e-coordenado/
[2] https://www.cnnbrasil.com.br/blogs/caio-junqueira/politica/bancada-da-bala-planeja-arquivar-pec-da-seguranca-de-lula/

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