João Vitor Loureiro
Pesquisador do Laboratório de Gestão de Políticas Penais (UnB). Doutor em Sociologia pela UnB
Em 2006, o Brasil assistiu estarrecido a uma onda de atos de violência organizada em estados de diversas regiões, mas com forte expressão em São Paulo, onde mais de 500 pessoas foram mortas, entre abril e maio. Esse contexto, de algum modo, empurrou o Estado brasileiro à adoção de um sistema excepcional de cumprimento de pena, já inspirado pela criação, desde dezembro de 2003, do chamado Regime Disciplinar Diferenciado – RDD. Tal sistema excepcional é o sistema penitenciário federal (SPF), composto por cinco unidades de privação de liberdade, que possuem cerca de 500 pessoas custodiadas, e justificado a partir da necessidade de controle de lideranças do crime organizado no país. Sua arquitetura pressupõe o isolamento celular como premissa, a incomunicabilidade entre detentos, a inclusão e permanência mediante decisão judicial no sistema.
Embora não seja possível reconhecê-lo como instrumento autoritário – pelo menos do ponto de vista formal, já que são observados os ritos regulares do processo legislativo democrático para adoção desse modelo – o SPF concebeu sua existência, ao longo dos anos, reconhecido por diferentes gestões, à esquerda e à direita, como remédio necessário para combater o crime organizado no país, ”neutralizando” lideranças de grupos criminais, especialmente sob a justificativa do isolamento celular/confinamento solitário delas.
Esse regime – estabelecido por lei, até 2019, como provisório (até três anos) e renovável excepcionalmente – foi acomodado nos pilares jurídicos do Estado brasileiro como indefinidamente renovável. Trata-se de uma solução mambembe, que visava conferir ares de justificabilidade a prisões de lideranças já anteriormente renovadas de maneira sucessiva, que permaneciam e permanecem cinco, dez, quinze anos nessas condições, e reconhecida como legítima pela sociedade.
Não é preciso muito para verificar que, a despeito da implementação definitiva do sistema federal e das transferências de lideranças, o crime organizado expandiu, especializou-se em atividades diversas e transnacionalizou-se, como aponta Nunes (2024). Alguns autores sustentam que o SPF, na verdade, produziu o efeito inverso ao esperado: reforçou laços entre lideranças, já que – a despeito de sua rigidez – ao permitir algum tipo de contato entre grupos criminais do Sudeste (como o PCC e o CV) e presos de outras regiões do país, criou condições para a nacionalização de suas atividades e dinâmicas criminais.
O contraste é nítido: com as previsões da Lei de Execução Penal – que preveem a progressividade de regimes de cumprimento de pena – e com compromisso internacional relevante do qual o Brasil é signatário – as Regras Nelson Mandela, ou Regras Mínimas das Nações Unidas para Tratamento de Presos, que preveem o isolamento celular como medida excepcional, e duração máxima de 15 dias.
É indispensável que perguntemos: quais evidências científicas demonstram a necessidade desse sistema? Qual a sua eficácia concreta? (embora possa dispor de uma fragilíssima aparência de eficácia simbólica, de exercer um papel dissuasório para que pessoas não se envolvam com episódios de violência intracarcerária ou apoiem-se como cabeças de redes criminais organizadas).
O SPF parece muito mais cumprir uma função paliativa, improvisada, da ineficiente estrutura de controle, vigilância, supervisão e desestruturação de redes de crime organizado no país –exercida por atores das áreas de inteligência, segurança pública e justiça criminal – que apontar para uma solução definitiva e justificável (do ponto de vista das evidências) sobre o porquê de sua existência.
A título de exemplo: um estudo de meta-análise recente, conduzido por Luigi et. al. (2022) investigou o impacto do confinamento solitário na reincidência pós-libertação. Foram analisados 12 estudos que refletiam um total de 194.078 casos, e que comparavam presos expostos ao confinamento solitário com a população geral carcerária. Os resultados indicaram uma associação (razões de probabilidade, ou OR) moderada entre isolamento e reincidência (OR = 1,67), incluindo violência (OR = 1,41), novas prisões (OR = 1,37) e reencarceramento (OR = 1,67). A exposição recente ao SC aumentou ainda mais esse risco (OR = 2,02), isto é, quanto mais recente o isolamento celular, maior a chance de reencarceramento.
Em outras palavras, o caso do SPF merece estudo. Quais são as efetivas evidências de que sua premissa – o isolamento celular – é eficaz? E mais: eficaz em que sentido? Dissuasório? Contra a reincidência criminal? Inibidor de violência? Ainda que se pretenda afirmar um papel preventivo – que estudos probabilísticos poderiam afirmar, com algum grau de certeza, que essa premissa funciona para desmantelar redes criminais no país? De que modo esse sistema responde às dinâmicas criminais no país, cada vez mais complexas, com lideranças multinível, rizomáticas e velozes? Recentemente, a renovação indefinida de prazo de permanência no SPF foi levada a julgamento pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. O parecer do relator, Salo de Carvalho, conclui que os isolamentos no Regime Penitenciário Federal, sejam como sanção disciplinar ou medida cautelar, violam normas internacionais, interamericanas e constitucionais que garantem a humanidade, a pessoalidade e a individualização das penas. Essas práticas são consideradas formas de privação de liberdade cruéis, degradantes e dessocializadoras, análogas à tortura e desrespeitam os princípios da excepcionalidade e da proporcionalidade, tornando-as incompatíveis com os direitos fundamentais.
Embora não raro seja possível observarmos uma blindagem do Sistema Federal, que visa rechaçar de imediato críticas ao SPF, associando-as de modo deturpado a interesses de grupos criminais, é preciso hoje e sempre perguntarmos: qual o propósito de um modelo de isolamento prolongado que, além de produtor de gigantesco sofrimento psíquico, ainda se demonstra pouco eficaz em produzir os resultados esperados?
Talvez, com isto, tenhamos clareza para renunciar a um direito de exceção, e oferecermos as respostas necessárias – e não improvisadas ou emergenciais – a problemas graves de nossa segurança pública e de nossa execução penal.