Duas mortes, duas medidas
As diferentes posturas adotadas nos casos do menino Ryan e do estudante de medicina Marco Aurélio mostram que “onde”, “quem” e “como” parecem ser critérios que orientam a reação do governo paulista. A depender dessas respostas, veremos ou não o reconhecimento de erros por parte dos policiais
Leonardo Carvalho
Doutor em Planejamento Urbano pelo IPPUR/UFRJ e Pesquisador Sênior do FBSP
As diferentes posturas do governo paulista frente às recentes mortes cometidas pela Polícia Militar do Estado de São Paulo – a do menino Ryan, uma criança de 4 anos no morro de São Bento, em Santos, e a de Marco Aurélio, um estudante de medicina de 22 anos no bairro paulistano da Vila Mariana – revelam que, para nossos gestores, nem todos são iguais.
Ryan brincava com outras crianças na rua de sua casa quando foi alvejado por um projetil de pistola .40 comprado com dinheiro de nossos impostos e disparado por um policial militar. O que sabemos da dinâmica dos fatos que resultaram na morte de Ryan é fruto dos depoimentos dos policiais envolvidos e de testemunhas, como seu irmão de 10 anos. Não há nenhuma imagem ou prova material para confirmar (ou não) a veracidade das versões dadas pelos policiais, que não usavam câmeras corporais naquela ocasião. O motivo da ausência das câmeras corporais, aliás, também não foi divulgado pela corporação. Além disso, as ruas do morro São Bento, diferente das ruas da Vila Mariana, não dispõem de câmeras de vigilância. A única manifestação oficial sobre a morte de Ryan foi feita pela Polícia Militar, lamentando a morte e assumindo que, provavelmente, era autora do disparo fatal. Já o Secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, defendeu a ação dos policiais, antes mesmo de qualquer apuração sobre a legalidade da ação[1]. Já da parte do governador do estado, Tarcísio de Freitas, não houve nenhuma manifestação sobre essa morte.
Exatamente 15 dias após a morte de Ryan, a Polícia Militar matava Marco Aurélio durante uma abordagem na Vila Mariana, na qual mais tarde ficou registrado que houve uso excessivo e desproporcional da força. Num primeiro momento, a narrativa dos policiais envolvidos na ocorrência era de que o estudante, alterado, tentou tomar a arma de fogo de um deles e por isso houve a necessidade de uso da força letal. Essa versão caiu por terra quando as imagens das câmeras de vigilância do local foram divulgadas. Os policiais também portavam câmeras operacionais portáteis que registraram o homicídio, mas ainda não houve menção das imagens ou a divulgação delas.
Diante da circulação das imagens das câmeras de vigilância, o governo paulista se manifestou de forma diferente em comparação com o que havíamos visto no caso de Ryan: o governador quebra o silêncio e se manifesta em suas redes sociais para lamentar muito a morte de Marco Aurélio e dizer que a conduta da polícia não deve ser essa com nenhum cidadão, sob nenhuma circunstância.
Se fôssemos todos iguais, tal como determina a Constituição Federal, não deveria haver diferença nas manifestações das autoridades diante de mortes cometidas por agentes do Estado. Espera-se que tais autoridades se importem com todos e todas de igual forma. Espera-se. Mas a diferente postura adotada pelo governador paulista, que ignora a morte de Ryan e se manifesta sobre a de Marco Aurélio, escancara o tratamento desigual dado às vítimas fatais de erros da polícia. “Onde”, “quem” e “como” parecem ser critérios que orientam a reação do governo e, a depender dessas respostas, veremos ou não o reconhecimento de erros por parte dos policiais.
Para além da tragédia, as mortes de Ryan e Marco Aurélio nos mostram a importância de mecanismos de accountability e de controle da atividade policial capazes de produzir evidências materiais. Esses mecanismos protegem os/as agentes que atuam dentro dos protocolos, protegem a população de eventuais abusos e denunciam os/as que atuam de forma ilícita.
A investigação sobre o homicídio de Ryan tem como principais elementos os depoimentos de pessoas que ali estavam, envolvidas ou presenciando a ação, carecendo de provas materiais como registros de vídeos/imagens e aguardando o resultado de perícias e laudos que, na maior parte dos casos, não são capazes de esclarecer de forma detalhada a completa dinâmica dos fatos, tais como imagens/vídeos. Neste contexto de falta de evidências materiais que podem esclarecer como ocorreu essa morte, temos ainda depoimentos que narram diferentes versões e dinâmicas que não se encaixam. Imagens de câmeras poderiam ser capazes de interligar, ratificar ou desmentir esses depoimentos.
Na morte de Marco Aurélio, tivemos inicialmente os depoimentos dos agentes envolvidos, que narraram uma sequência de acontecimentos que culminavam na culpabilização da vítima, ao destacar que ele teria tentado tomar a arma de fogo de um dos policiais, o que justificaria o uso da força letal. Como posteriormente foram divulgados vídeos que registraram a sequência dos fatos, que contrariavam o depoimento dos agentes, foi comprovado o uso desproporcional da força que provocou a morte. Na inexistência de tais imagens, tal como já vimos em outros casos, teríamos apenas as versões dos policiais, nenhuma prova material e grandes chances de prevalência da impunidade.
Com a circulação das imagens que comprovam o uso excessivo da força, o desrespeito às normas e procedimentos operacionais institucionais ficou evidente na morte de Marco Aurélio, o que só fez ampliar a repercussão do caso. Contribuiu ainda para manter o tema no noticiário o fato de Marco Aurélio ser um estudante de medicina. Além disso, a ação ocorreu numa área de classe média da capital, elementos que certamente pressionaram o governo a se manifestar. No caso do menino Ryan, além da inexistência de imagens, o fato de a ação ter ocorrido numa área de periferia da Baixada Santista, contra uma família pobre, parece ter dado o aval para o governo deixar de se manifestar.
Ambas as mortes precisam ser apuradas e é necessário que seus autores sejam responsabilizados. Não pode ser visto com normalidade termos, num único mês em São Paulo, duas mortes como essas, pelas mãos do Estado, cuja obrigação é garantir a todas as pessoas o direito à vida. Não se pode banalizar o assassinato de pessoas em ações policiais, ou corremos o risco de assistirmos a outras crianças assassinadas pela polícia paulista.