Bernardo Buarque de Hollanda
Professor da Escola de Ciências Sociais/FGV CPDOC
Luiz Henrique de Toledo
Professor Titular de Antropologia/UFSCar
Em 6 de novembro, publicamos a primeira parte deste texto, sob o calor de mais um incidente entre torcidas organizadas rivais, cuja amplificação extrapolou o próprio meio esportivo e tanto alcançou quanto chocou a opinião pública nacional. Tratou-se do confronto entre dois tradicionais agrupamentos de torcedores organizados: um, formado pelos palmeirenses da Mancha Alviverde; o outro, pelos cruzeirenses da Máfia Azul. Os torcedores do clube paulista emboscaram, na altura do km 65 da rodovia Fernão Dias, no município de Mairiporã, na região metropolitana de São Paulo, a caravana cruzeirense, que regressava de uma partida em Curitiba. Um torcedor do clube de Belo Horizonte morreu, e houve dezenas de feridos. Alguns foram linchados, golpeados com barras de ferro, e levados ao hospital. Houve casos de traumatismo craniano.
A oportunidade de voltar a publicar neste espaço ocorre num momento menos influenciado pela emoção coletiva que a virulência das imagens causou, somada à dramaticidade da ocorrência de uma morte associada a um esporte de massas.
Convém observar que, após intensa repercussão midiática – reportagens e coberturas especiais, notas de repúdio da parte dos clubes, anúncio de medidas restritivas e repressivas por autoridades futebolísticas e certo clamor generalizado para entender a “barbárie” –, o interesse pelo assunto arrefece, com a Justiça a seguir seu curso e sua temporalidade própria, em investigação que aos poucos se esvai, por assim dizer, da pauta midiática.
É possível que o rápido esquecimento receba um contraponto quando, de tempos em tempos, a mídia trouxer à tona novidades do inquérito. Entretanto, assim como se observa na lógica dos escândalos políticos ou dos crimes urbanos de modo geral, a tendência que se aponta é a diluição da sua excepcionalidade, à medida que as competições esportivas apresentem novos distúrbios e relatos, superpondo camadas de confrontos, o que já ocorreu no breve intervalo entre as publicações do nosso texto anterior neste espaço e a deste artigo.
Observa-se, pois, o modus operandi do enquadramento de um problema social, a caminhar a reboque do chamado “pânico moral”. Uma perspectiva histórica mostra que a cobertura jornalística tem operado dessa forma desde fins da década de 1980, quando se trata de pautar a morte como um “acontecimento” no universo das torcidas organizadas. O ato fundador de tal linhagem narrativa ocorreu com o falecimento do jovem sergipano Cleofa Sóstones Dantas da Silva, o Cléo, fundador e então presidente da Mancha Verde. Ele foi assassinado no dia 17 de outubro de 1988, em frente à sede da torcida do Palmeiras.
A premeditação do assassinato e a utilização de armas de fogo revelaram o grau de beligerância a que chegavam as rixas entre as torcidas organizadas, fato agravado ainda em razão de a vítima ser não apenas um componente, mas o líder de uma das mais conhecidas e “temidas”, conforme o jargão nativo, agremiações do país. Fundada cinco anos antes (1983), a Mancha era considerada uma das primeiras torcidas a surgir com o propósito explícito de autodefesa e de enfrentamento com as rivais, por meio da união de três pequenos grupos de palmeirenses.
Segundo o depoimento de Paulo Serdan, um de seus fundadores: “Nós costumamos dizer que foi um mal necessário, porque a torcida do Palmeiras, antes da criação da Mancha, era uma torcida muito escorraçada. Era uma torcida que apanhava de todo mundo. Era uma torcida desacreditada”. O caso de Cléo, que morreu fora das circunstâncias que envolvem uma partida, seria levado para o âmbito da criminalidade e da investigação policial. Transcorridos cinco meses do assassinato de Cléo, a revista Placar mostrava como o inquérito 818/88 continuava sem elucidação, enredado nas malhas da inoperância e da burocracia.
Ponto de chegada de uma rivalidade e de uma intolerância progressivas, cuja espiral ia das brigas físicas espontâneas a eventuais empregos de armas brancas, chegando à ação planejada, com utilização de revólver para aniquilar o “inimigo”, a morte de Cléo seria o ponto de inflexão, ou o ponto de partida para vendetas e uma série de mortes escaladas desde então, conforme mostra a excelente reportagem investigativa desenvolvida por Adriano Wilkson no podcast “Sobre meninos e porcos”, do portal UOL. Lançado em 2021, o conjunto de episódios dedicou-se a reconstituir em profundidade a investigação pormenorizada do crime contra o líder da Mancha e a apurar todos os bastidores decorrentes do ciclo de vinganças instaurado nesse meio.
Depois de 1988, para a grande imprensa, um novo capítulo sucederia apenas em 1995, quando um outro “acontecimento” ganha projeção e volta a atrair atenções para o fenômeno. A gravação da final da segunda edição da Supercopa São Paulo de Futebol Júnior, entre São Paulo e Palmeiras, registra a invasão de campo da massa das torcidas organizadas de ambas as equipes, Independente e Mancha Verde. Houve enfrentamento com bastões, paus e pedras, naquela que ficou batizada como a batalha campal do Pacaembu[1].
O episódio fez centenas de feridos e resultou na morte de um menor de idade são-paulino, com o registro ao vivo de uma sequência de cenas que seriam exibidas diversas vezes ao longo da semana. As discussões na imprensa escrita, falada e televisada acarretam, por um lado, a sensibilização e a perplexidade de vários extratos alheios ao futebol, inopinadamente despertados para a urgência e a gravidade da situação; por outro, ensejam reações extremadas das autoridades, como o Ministério Público no estado, por intermédio de Fernando Capez, que vê no banimento das torcidas a providência mais adequada para conter as litigiosas contendas grupais.
A proibição respondeu no curto prazo ao choque da opinião pública com a morte de um torcedor. De maneira subjacente, deu inclusive projeção política ao promotor da medida interditiva, mas não logrou transformar o cenário beligerante. Entrementes, tais torcidas souberam reconverter-se em outros associativismos, com a criação de escolas de sambas homônimas, passando a atuar com ainda mais vigor no seio do carnaval paulistano. Após cerca de dois anos da medida do MP, os agrupamentos voltaram a se fazer representar nos estádios, dada a incapacidade do Estado de impedir contingentes quantita e qualitativamente fortes de sua existência de fato, correspondendo ao reconhecimento jurídico de direito.
A inação das autoridades esportivas e policiais, após um decreto de extinção, inócuo a longo termo, juntou-se ao “esquecimento” da realidade das TOs por parte dos meios de comunicação, cuja abordagem estigmatizante trouxe efeitos perversos evidentes desde então. Os confrontos entre grupos organizados na “cidade das torcidas”, por seu turno, continuaram a crescer, a se ramificar e a se complexificar, com a oscilação pendular do grau de institucionalização e de marginalização de tais grêmios.
Poderíamos avançar na narrativa durante o século XXI, com a introdução à cronologia de mais uma morte no ambiente paulistano a que nos cingimos, quando uma rixa em dia de Corinthians e Palmeiras culminou em bala perdida a léguas de distância de um estádio e vitimou um transeunte. A comoção midiática leva a nova resposta do Ministério Público em 2016, com a decretação da controvertida medida de “Torcida Única” em partidas entre clubes da cidade de São Paulo e de Campinas. Como não há espaço para desenvolvimento aqui, recomenda-se o consistente balanço empreendido pelo pesquisador Rodrigo Barneschi para a Revista Piauí, “A negação do outro” (edição 212, maio de 2024), a sustentar a ineficácia da medida em quase uma década de implementação.
Esses três marcos cronológicos – 1988, 1995 e 2016 – poderiam bem se somar a outros tantos incidentes fatais que vêm se banalizando e mostrando a incapacidade do poder público de lidar com o fenômeno, como bem mostra a mais recente morte perpetrada por membros da torcida palmeirense contra um cruzeirense em novembro. Nos limites do espaço desta coluna, importa sublinhar isso que chamamos de um modus operandi estabelecido: a mídia repercute casos fatais entre torcidas organizadas, acentuando seu estigma, ao passo que autoridades governamentais e estatais responsáveis respondem tão somente com mais repressão e com mais judicialização.
Por suposto, a contundência das medidas repressivas alcança algum impacto no curto prazo, mas o que se observa é um ciclo vicioso de esquecimentos e iniquidades. De tempos em tempos, a realidade nua e crua volta a desafiar a letra fria da lei, o voluntarismo de cruzados da ordem ou ainda a reconfortante crença na profecia autorrealizadora de um ato mera e exclusivamente normativo para “resolver” um “problema” social.