Mais do mesmo? A expansão da monitoração eletrônica e os velhos caminhos do controle penal no Brasil
Breve abordagem dos dados de monitoração eletrônica do RELIPEN (2024) evidencia o alargamento do espectro penal em direção das pessoas com os mesmos marcadores sociais apresentados por aqueles que estão segregados em celas físicas, ou seja, jovens de 18 a 40 anos, em sua maioria negros, com baixa escolaridade e predominantemente acusados por crimes de tráfico e patrimoniais
Christiane Russomano Freire
Doutora em Ciências Criminais pela PUCRS. Professora do Programa de Pós-Graduação em Política Social e Direitos Humanos da Universidade Católica de Pelotas. Integrante do Grupo Interdisciplinar de Trabalho e Estudos Criminais-Penitenciários (GITEP/UCPEL). Integrante do Laboratório de Gestão de Políticas Penais - LabGEPEN/UnB/Brasília
Izabella Lacerda Pimenta
Doutora em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense – UFF/Brasil. Pesquisadora visitante do Departamento de Criminologia da University of Ottawa (Canada) e do Correctional Service of Canada (2012-2013). Pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) – Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (InEAC), UFF/Niterói/RJ e do Laboratório de Gestão de Políticas Penais - LabGEPEN/UnB/Brasília
É amplamente sabido que o Brasil figura entre os países com as maiores taxas de encarceramento no mundo. No ano de 2024, a população prisional no Brasil em celas físicas totalizou 668.051 pessoas (sistema penitenciário e outras carceragens), enquanto a população em prisão domiciliar sem monitoração eletrônica totalizou 115.117, e, em prisão domiciliar com monitoração eletrônica, 105.104 pessoas, o que compreende a soma de 888.272 pessoas em cumprimento de pena em todo o território nacional (SENAPPEN, 2024)[1].
O crescimento das taxas de aprisionamento no Brasil, que elevou o país ao terceiro lugar no ranking mundial, alinha-se ao conceito de Michelle Alexander em A Nova Segregação: Racismo e Encarceramento em Massa (2017), que vê o encarceramento como sistema complexo e multifacetado, que, para além de números, envolve dimensões políticas e sociais. Conforme Alexander, esse sistema organiza novas formas de controle e sujeição, atingindo populações vulnerabilizadas por fatores raciais, sociais, econômicos e culturais. Não se trata apenas da prisão física, mas de uma teia de controle que expande as limitações de liberdade por meio de “grades virtuais”.
Diante desse quadro, quais as políticas públicas capazes de enfrentar tal realidade? Quais as políticas penais que podem reduzir o superencarceramento? A monitoração eletrônica pode se constituir em ferramenta destinada a frear o aprisionamento em massa? Ou surge como “mais um” mecanismo penal que agrava as tradicionais vulnerabilidades e estigmas?
Antes de responder a essas questões, o que não seria possível neste breve texto, faz-se necessária a leitura dos dados recentes da política nacional de monitoração eletrônica[2]. Em paralelo ao crescimento do encarceramento em celas físicas, o Brasil registra um aumento substancial da restrição de liberdade por meio de dispositivos eletrônicos. Logo, há mais um instrumento no campo da vigilância que atua de forma paralela e complementar ao sistema prisional tradicional.
Os dados do RELIPEN de 2023 e do primeiro semestre de 2024 demonstram que a monitoração, como medida cautelar alternativa à prisão, não reduziu o número de pessoas presas provisoriamente em unidades prisionais. O percentual de provisórios se manteve em 27%, contradizendo as expectativas de redução dessa modalidade de prisão suscitada pela Lei das Cautelares. E aproximadamente 25% das pessoas monitoradas não foram condenadas com trânsito em julgado, evidenciando que tais dispositivos atuam mais como forma de controle adicional e não como alternativa à prisão.
No primeiro semestre de 2024, de acordo com os dados publicados pela SENAPPEN, das pessoas monitoradas eletronicamente, 29.086 cumpriam pena provisória (27,6%), 4.142 eram condenadas em regime fechado (3,9%), 55.263 no semiaberto (52,6%) e 16.521 no aberto (15,7%). Ou seja, estamos falando de mais de 72% de pessoas em cumprimento de pena monitoradas, num país que tem fechado de forma sistemática diversas unidades prisionais do regime semiaberto, imputando a monitoração de forma ampla, desconsiderando, inclusive, a premissa de que a medida não cabe para todo e qualquer perfil de pessoa.
Falando em vulnerabilidades historicamente estruturadas e estruturantes, quando o assunto é a pauta penal em seus múltiplos arranjos, o perfil socioeconômico das pessoas monitoradas espelha o perfil das pessoas segregadas em celas físicas. Em junho de 2024, 68.382 pessoas monitoradas informaram sua faixa etária: 14,2% tinham entre 18 e 24 anos; 21,3% entre 25 e 29; 18,3% entre 30 e 34; 27,7% entre 35 e 40; 13,7% entre 46 e 60; 3,3% entre 61 e 70; e 1,2% com mais de 70 anos.
Quanto à cor da pele/raça/etnia, o RELIPEN registrou 75.729 autodeclarações: 33,3% se identificaram como brancos, 11,6% como pretos, 53,7% como pardos, 0,89% como amarelos e 0,35% como indígenas. Aproximadamente 12 mil pessoas não informaram esse dado.
Outro indicador relevante é a escolaridade. No universo das 67.807 pessoas monitoradas: 4,3% se declararam analfabetos; 5,8% alfabetizados; 41,5% com ensino fundamental incompleto; 11,9% com fundamental completo; 16,3% com médio incompleto; 15,1% com médio completo; 2,4% com superior incompleto; e, 2% com superior completo.
A tipologia criminal também é um fator importante para a análise da monitoração. Entre os 41.134 registros, 32,2% estão relacionados à Lei de Drogas e 28,6%, a delitos patrimoniais. Logo, mais de 60% das pessoas em monitoração eletrônica cumprem sanções por delitos relacionados à circulação de mercadorias ilegais, os quais, em geral, não envolvem violência contra a pessoa.
A breve abordagem dos dados de monitoração eletrônica do RELIPEN (2024) evidencia o alargamento do espectro penal em direção das pessoas com os mesmos marcadores sociais apresentados por aqueles que estão segregados em celas físicas, ou seja, jovens de 18 a 40 anos, em sua maioria negros, com baixa escolaridade e predominantemente acusados por crimes de tráfico e patrimoniais. A expansão da monitoração eletrônica no Brasil criou um subcampo no sistema penal e penitenciário, exigindo novas abordagens e análises para melhor compreensão do papel e dos impactos desses dispositivos de vigilância e controle. O presente artigo suscita o debate e convida os atores envolvidos com o campo das políticas penais a pensar criticamente tal realidade.
[1] Secretária Nacional de Políticas Penais. Levantamento de Informações Penitenciárias. Painel powerbi.Disponível:https://www.gov.br/senappen/pt-br/servicos/sisdepen. Acesso: 16.11.2024.
[2] Este artigo explora o aumento do uso da monitoração eletrônica no Brasil, utilizando dados do Relatório de Informações Penais (RELIPEN – 16º Ciclo), divulgado em julho de 2024 pela Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN) do Ministério da Justiça e Segurança Pública. O relatório organiza os dados do sistema prisional brasileiro em três categorias: presos em celas físicas, pessoas em prisão domiciliar com monitoramento eletrônico e sem monitoramento eletrônico. A análise se concentra na segunda categoria, examinando especificamente a prisão domiciliar com uso de dispositivos eletrônicos de monitoração.