“Vou aprender a ler para ensinar meus camaradas”: um breve olhar sobre a educação prisional
Devemos lutar pela construção de um modelo de educação prisional que enfrente as desigualdades estruturais de raça e gênero e ofereça às pessoas privadas de liberdade uma verdadeira oportunidade de ressignificação de suas trajetórias
Pollyanna B. L. Alves
Pesquisadora Labgepen
O dia 15 de outubro é conhecido em nosso país por marcar o Dia dos Professores e Professoras. A data, criada pela então deputada Antonieta de Barros, foi oficializado em nosso calendário pelo presidente João Goulart. A parlamentar, primeira deputada negra em nosso país, lutava por uma educação para todos e acreditava que os educadores eram agentes de mudança na sociedade. Para além de se celebrar uma data, pensar educação em nosso país é obrigatoriamente pensar os marcadores raciais e compreender que a qualificação da educação no Brasil deve ser interpretada como um importante passo para efetivação de políticas de reparação do período escravocrata que atravessou e atravessa nossa história.
A Constituição Federal brasileira, em seu artigo 205, preconiza que a educação é um direito fundamental social, sendo esta uma das principais ferramentas para o desenvolvimento pessoal e social de cada cidadão. Sabemos, no entanto, que sua natureza e impacto podem variar dependendo do contexto em que é aplicada, podendo ser utilizada como uma ferramenta de repressão, reforçando as desigualdades estruturais, ou se tornando um instrumento poderoso de emancipação, assegurando a conscientização e a transformação social. Paulo Freire, em sua obra Pedagogia do Oprimido[1], destaca que, frequentemente, o sistema educacional serve para manter os grupos dominantes no poder. Em vez de ser um espaço de libertação, a educação formal pode ser um instrumento de controle social, moldando os indivíduos de acordo com as normas estabelecidas pela classe dominante. A ideia de que a educação é uma força neutra, que simplesmente transmite conhecimento e valores, tem sido desafiada por pensadores críticos como Freire.
Esse debate fica ainda mais importante quando pensamos a educação no sistema prisional. A educação é uma ferramenta fundamental para a inclusão social das pessoas privadas de liberdade e egressas do sistema prisional, mas sua implementação no Brasil enfrenta uma série de desafios, especialmente quando consideramos as desigualdades estruturais de raça e gênero. A população negra, devido ao racismo institucional e estrutural, é desproporcionalmente afetada pelo sistema de justiça criminal, sendo frequentemente alvo de abordagens policiais violentas, encarceramento em massa e, consequentemente, de uma educação desprovida de alternativas para a transformação de suas trajetórias.
Dentro desse cenário, a educação no sistema prisional não pode ser vista como um simples repasse de conteúdos, mas como uma prática de empoderamento, que deve levar em conta as especificidades de cada indivíduo, especialmente as questões raciais e de gênero. A educação, nesse sentido, é uma prática de libertação do pensamento crítico, que permite à pessoa presa questionar as causas da sua situação e agir sobre elas. A educação deve ser um espaço onde as pessoas possam refletir sobre suas identidades, suas experiências e as relações de poder que as marginalizam, criando um espaço de conscientização, aquilombamento e resistência. E a pergunta central que ecoa é: por que a educação é algo tão desafiador no cárcere e mais, de qual educação estamos falando?
O Brasil, de acordo com os dados do Sisdepen, tem uma das maiores populações carcerárias do mundo, tendo apenas 20% da sua população prisional envolvida em atividades educacionais formais. Superlotação, infraestrutura inadequada, gestão prisional centrada apenas na segurança e não na garantia de direitos são alguns dos fatores que explicam tal coeficiente. Infelizmente, não raro, salas de aula se transformam em celas em nossas unidades prisionais. Vale lembrar que a educação no sistema prisional brasileiro está prevista pela Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984), que garante às pessoas presas o direito à educação, incluindo o ensino fundamental e médio, além da possibilidade de acesso à educação superior, como a graduação e cursos de extensão. No entanto, pensar a democratização do acesso à educação no ambiente prisional demanda não só refletir sobre qual educação buscamos, mas também a respeito da necessidade de ampliação de olhar outras práticas que não as atividades educacionais formais.
A Resolução CNJ n 391/2021[2] marca um importante avanço ao reconhecer atividades educacionais escolares e não escolares para fins de remição de pena. Em outras palavras, o Poder Judiciário reconheceu a importância da leitura, do acesso aos livros, de atividades de cultura, esporte, lazer e outras para a vivência e inclusão das pessoas privadas de liberdade, devendo a elas ser asseguradas ferramentas e atividades para “afirmação da identidade”, como nos ensina Conceição Evaristo. Para Evaristo, a literatura é uma ferramenta de resistência, permitindo que as vozes silenciadas sejam ouvidas e respeitadas. Essa abordagem é particularmente relevante para a educação nas prisões, onde muitos enfrentam a invisibilidade social e a criminalização de suas existências. Apesar do reconhecimento do avanço da Resolução supracitada em nosso ordenamento, esta vem sofrendo ataques no Congresso (Projeto de Lei n. 4988[3]), o que pode resultar em lamentáveis retrocessos.
Tais ataques demonstram que a sociedade brasileira ainda teme uma educação emancipadora, principalmente para uma parte da população. Pensar a educação prisional não é apenas um direito previsto em nossos normativos nacionais e internacionais. Pensar a educação prisional é pensar que tipo de sociedade e de cidadão queremos. Devemos lutar pela construção de um modelo de educação prisional que enfrente as desigualdades estruturais de raça e gênero e ofereça às pessoas privadas de liberdade uma verdadeira oportunidade de ressignificação de suas trajetórias.
Investir em uma educação que leve em conta as especificidades raciais e de gênero é garantir que se aprenderá a ler para ensinar os camaradas, como canta Maria Bethânia. É, ao fim e ao cabo, investir em uma sociedade que promova justiça social, justiça racial e que reconheça que a educação não pode ser vista como um privilégio de poucos e, sim, um direito de todos.