Preto no branco – a urgência de racializar o debate
Deixar de considerar o Judiciário como locus privilegiado para o debate racial é abrir mão de tensionar uma estrutura que, ancorada na suposta imparcialidade, vem sendo sinônimo de perpetuação de opressões que deixam ainda mais à margem a população negra
Juliana Brandão
Doutora em Direitos Humanos pela USP e pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Qual o papel do sistema de justiça no reconhecimento da existência negra, em condição de equânime fruição de direitos? A resposta já temos. E muito embora ela cause desconforto quando colocada em evidência, não conseguimos, ainda, avançar para além disso.
Proponho então ampliarmos as lentes, para revisitarmos os casos de Esperança Garcia e de Marielle Franco. Ambos, embora guardem entre si distância de mais de dois séculos, colocam gênero e raça como contornos das demandas.
O ano era 1770. Esperança Garcia, piauiense, primeira advogada do Brasil, denuncia as indignidades em que vivia, fazendo chegar, por escrito, ao governador do Piauí, sua condição de mulher negra, mãe e escravizada.
Passamos pela abolição, por quase uma dezena de Constituições, redemocratização, racismo imprescritível e inafiançável, Lei Caó, cotas raciais constitucionais. Precisamente 254 anos depois, chegamos ao aguardado e simbólico júri de Marielle Franco, em outubro de 2024.
No plenário, cumprimentos de praxe. Processo volumoso, de um caso com reveses e imensa repercussão dentro e fora do cenário nacional. Ministério Público e Defensoria Pública compõem o polo acusatório da demanda. Convergem no pedido e até alcançam o resultado jurídico pretendido. No entanto, percorrem estratégias processuais distintas, em um ponto que pode parecer um detalhe, mas que aqui vou recolocar no centro da nossa atenção: o recorte racial.
Enquanto os promotores de justiça optam pela narrativa de que não importa quem foi morto, no sentido de que, independentemente da raça, do gênero, da filiação política ou quaisquer outros marcadores que poderiam singularizar o caso, trata-se de um crime que indubitavelmente não pode ficar sem resposta estatal, os defensores públicos vão no sentido oposto – é justamente porque estamos lidando com a prova concreta da precariedade das vidas negras que precisamos racializar o debate.
Temos aí um bom motivo para nos perguntarmos – com a ressalva de que não tenho intenção de fazer análise minuciosa dos meandros processuais do caso – se os réus foram condenados e essa era a principal pretensão, importa discutir se o fato de Marielle ser uma mulher negra lésbica foi ou não levado em conta?
Será mesmo indiferente ou até melhor, como declarou o Ministério Público em sua sustentação oral, que o Conselho de Sentença estivesse composto por sete jurados de “pele clara” e de “meia idade”?
Também em razão das normas processuais em vigor, não saberemos em detalhes a motivação dos contornos do veredito. Contudo, o silêncio sobre o racismo dialoga com a indignação seletiva da consciência negra que vai lá atravessar o Atlântico e não tem olhos de ver a crueza da desigualdade racial no elevador de serviço.
Deixar de considerar o Judiciário como locus privilegiado para o debate racial é abrir mão de tensionar uma estrutura que, ancorada na suposta imparcialidade, vem sendo sinônimo de perpetuação de opressões, que deixam ainda mais à margem a população negra. Nessa linha, é necessária e oportuna a leitura de Kilomba – enquanto o homem branco pode se afirmar como pessoa e a mulher branca apenas como mulher, a mulher negra precisa se identificar como uma mulher negra. A negação disso equivale a se manter continuamente indiferente às desvantagens que subjugam a condição feminina negra.
Sobre Esperança Garcia, não há consenso sobre os desdobramentos que sua petição alcançou. Sobre Marielle Franco, é certo que a sentença juridicamente selou a pena dos executores do homicídio. Apesar disso, nesses dois casos, não sabemos qual o peso que o recorte racial assumiu. Gênero e raça foram esvaziados, ainda que condicionem relações sociais, de trabalho, acesso à renda e mesmo direitos.
Na linha do tecnicismo, casos paradigmáticos servem como precedentes para situações semelhantes. Se considerarmos a perspectiva do coletivo, essa construção pode gerar benefícios para a sociedade, na medida em que estabelece leituras que podem vir a ser utilizadas como balizas futuras. Temos o aumento da segurança jurídica que, a longo prazo, pode contribuir para um sistema de justiça que mais se aproxime da realidade que regula.
Lívia Sant’Anna e Chiara Ramos defendem uma outra representação imagética da justiça. Ao invés da deusa Thêmis, mulher branca, figura imparcial, de olhos vendados, segurando espada e a balança, entendem que a imagem que melhor traduz a justiça é a de uma mulher negra, de cabelos crespos, olhar altivo e olhos bem abertos, com a espada em riste, para assegurar o enfrentamento de todas formas de opressão e com a balança, que garante o equilíbrio nessa trajetória.
Para corrigirmos desigualdades, é certo que precisamos reconhecê-las como tal. A técnica jurídica resolve uma parte do problema. Por isso é incontornável que o Judiciário esteja atento à racialização das demandas e que as normas que lhe dão sustentação estejam em harmonia com essa perspectiva.