Roberto Uchôa
Policial federal, Conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e doutorando em Democracia do Século XXI no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
A promulgação do Estatuto do Desarmamento em 2003 representou uma virada decisiva na política de controle de armas de fogo no Brasil, estabelecendo regras claras e restritivas para a aquisição e posse de armamentos com o objetivo explícito de frear a escalada da violência armada no país. Com a nova legislação, passaram a vigorar requisitos obrigatórios: comprovação de inexistência de antecedentes criminais, demonstração de aptidão técnica para o manuseio de armas e a aprovação em exame psicológico que atestasse a estabilidade emocional do solicitante. Essas medidas visavam dificultar o acesso a armas por indivíduos para os quais não era recomendável, criando uma estrutura de controle mais robusta.
Durante anos, acreditou-se que os critérios rígidos, somados à análise criteriosa e subjetiva dos policiais federais sobre a declaração de necessidade de armas por parte dos requerentes, seriam suficientes para barrar o acesso indevido. No entanto, a alteração da política de controle durante o governo Bolsonaro, acompanhada de uma demanda sem precedentes por armas de fogo, evidenciou a fragilidade desse sistema. A retirada da avaliação de necessidade e a multiplicação de armas em circulação confirmaram que a confiança nesse modelo era ilusória. Com a “necessidade” de possuir uma arma presumida, restava aos policiais a verificação básica da documentação, enquanto a análise de propósito era praticamente abolida. Isso criou uma brecha que beneficiou aqueles que já haviam sido reprovados anteriormente, permitindo que obtivessem armas em novas tentativas.
A realidade expôs não apenas a inadequação das ferramentas de verificação, mas também a falta de procedimentos consistentes para comprovar informações fundamentais. Certidões criminais, embora exigidas, careciam de mecanismos robustos de checagem. Em alguns casos, sequer havia a possibilidade de validar a veracidade das informações, o que gerou um ambiente no qual pessoas inaptas ou até mesmo com histórico criminal conseguiam acesso a armas, e o problema também afetava os militares, responsáveis pela fiscalização dos CACs.
Um dos problemas mais críticos foi e continua sendo a comprovação de antecedentes criminais. Embora constitua um dos pilares do Estatuto do Desarmamento, com o objetivo de evitar que armas de fogo fossem usadas para fins ilícitos, o sistema de verificação ainda apresenta falhas graves. Exigir certidões criminais apenas da localidade de residência do requerente abre espaço para fraudes, seja por meio da falsificação do endereço de moradia ou da apresentação de certidões “incorretas”. Um caso emblemático ocorreu em Uberlândia, onde um homem com mais de uma dezena de processos por crimes como tráfico de drogas e homicídio obteve registro como CAC e adquiriu diversas armas. Só foi identificado após uma investigação da Polícia Federal. As Forças Armadas, responsáveis pelo registro, alegaram falta de acesso aos antecedentes do solicitante e confiaram nas certidões apresentadas, que indicavam aparente cumprimento do requisito.
A ausência de um sistema nacional integrado de antecedentes permite que pessoas com histórico criminal ou que estejam cumprindo penas consigam burlar o processo e adquirir armas. Relatório recente do Tribunal de Contas da União (TCU), que auditou a fiscalização sobre os CACs, destacou essa fragilidade e revelou que a falta de integração permitiu a milhares de pessoas, inclusive condenadas, a aquisição de armas e munições legalmente. Esse problema, que deveria ser uma exceção, se transformou em uma falha estrutural, comprometendo a segurança pública.
Outro ponto sensível é a verificação da aptidão técnica para o manuseio seguro de armas. Apesar de ser uma exigência do Estatuto, casos de acidentes relacionados ao uso inadequado de armas mostram que as avaliações práticas frequentemente não garantem preparo suficiente. Muitos acidentes domésticos, frequentemente envolvendo crianças e jovens, resultam do manuseio impróprio e do armazenamento descuidado de armas. Esses incidentes expõem a necessidade urgente de treinamentos mais detalhados e regulares, que instruam não apenas quanto ao uso técnico, mas também no que concerne à segurança e responsabilidade no manejo e armazenamento de armas de fogo.
A avaliação psicológica, por sua vez, também tem sido alvo de questionamentos, especialmente após um trágico episódio recente no Rio Grande do Sul. Um atirador esportivo, registrado como CAC, utilizou armas legalmente adquiridas para matar dois familiares e dois policiais que atendiam uma ocorrência de maus-tratos. O confronto se estendeu por horas, culminando na morte do atirador em um tiroteio. O caso chamou atenção pela revelação de que o agressor já havia tido ao menos quatro episódios de surtos esquizofrênicos. Isso levanta a questão: como ele conseguiu a aprovação psicológica para posse de armas? Essa pergunta ainda paira no ar e é provável que não seja respondida de forma conclusiva, uma vez que a tendência é focar a responsabilidade na(o) profissional que emitiu o laudo, em vez de discutir a eficácia do exame para impedir que indivíduos com distúrbios psiquiátricos obtenham armas.
Esses casos deixam claro que a previsão de requisitos legais não é suficiente; é essencial a criação e o aperfeiçoamento de ferramentas que garantam sua efetiva comprovação. No Brasil do século XXI, ainda há dificuldades em implementar bancos de dados e resistências na atualização de procedimentos e critérios de avaliação. Para que o Estatuto do Desarmamento cumpra seu papel, evitando que armas cheguem às mãos de quem não deveria possuí-las, é necessário seguir criteriosamente as normas de aquisição de armas.
Para reverter esse cenário, algumas mudanças são cruciais. Primeiramente, urge a criação de um banco de dados nacional que consolide os antecedentes criminais de todas as instituições de justiça criminal, promovendo um controle mais rigoroso e reduzindo a possibilidade de que indivíduos com histórico criminal contornem o sistema. Em segundo lugar, deve ser revisado o treinamento para o manuseio de armas, com o objetivo de incluir simulações mais realistas e atualizações periódicas. Isso garantiria que os detentores de armas não apenas as utilizem tecnicamente, mas também de forma responsável e segura.
Por fim, o processo de avaliação psicológica requer uma revisão criteriosa em conjunto com o Conselho Federal de Psicologia e outras entidades competentes. É fundamental estabelecer padrões mais rigorosos e exames periódicos capazes de detectar alterações de comportamento, ajudando a evitar tragédias. A situação atual, na qual armas foram adquiridas por pessoas que jamais deveriam tê-las, não pode se perpetuar.