Guardas Municipais: entre a inovação e os riscos da militarização
Quando se defende que as práticas de policiamento das guardas municipais se aproximem cada vez mais daquelas adotadas pela Polícia Militar, incorre-se no risco de se perder de vista o processo de consolidação de um perfil condizente com as especificidades municipais
André Zanetic
Doutor em Ciência Política e pesquisador em Justiça Criminal e Segurança Pública. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Por volta dos anos 1980, a segurança pública no Brasil era compreendida apenas como área de responsabilidade dos governos estaduais, através de suas polícias, do judiciário e do ministério público, contando ainda com uma pequena participação do nível federal, por meio das polícias federais. A atuação dos municípios na área passou a crescer a partir dos anos 90, não pelas mudanças na legislação, mas sim através de um alargamento conceitual e administrativo[1], em um contexto de ampliação importante dos homicídios e outros crimes. A partir daí, diferentes níveis e instâncias administrativas passaram a ter mais atuação na área, consolidando um maior envolvimento especialmente das esferas federal e municipais. Até então, em âmbito municipal, poucos municípios possuíam guardas municipais, que constituem o principal corpo de servidores voltados a essa atuação.
Os municípios e suas guardas municipais podem exercer um papel muito importante na segurança pública. Desde esse alargamento institucional, observa-se um crescimento exponencial de criação de secretarias municipais de segurança atuando na segurança urbana, na constituição de guardas municipais e ampliação de efetivo, graças também ao apoio do governo federal desde o final dos anos 90, e sobretudo na primeira década dos 2000, e na pluralidade de atividades desenvolvidas por esse nível de gestão. A participação dos municípios passou de uma atuação restrita à proteção de alguns estabelecimentos e um apoio muito circunscrito às polícias militares para uma atuação que vai muito além da interpretação reducionista que se tinha inicialmente do artigo 144 da constituição, que constitucionaliza as guardas municipais como um dos entes da segurança pública.
Muitos municípios passaram a ter sua política de segurança planejada através do uso de análise de informações sistemáticas acerca dos problemas de segurança e dos instrumentos de gestão, criando observatórios municipais da violência, estabelecendo parcerias com outras áreas da gestão municipal, como as da saúde, educação e assistência social, trabalhando com perspectivas como as do urbanismo e da prevenção situacional. Diferentes experiências de gestão da guarda se pautaram na construção de modelos de atuação pautado por uma aproximação efetiva da população como interlocutores ativos no planejamento e no dia a dia do desenvolvimento de ações, pela fiscalização de posturas municipais diretamente associadas a fatores de risco da criminalidade e violência, como o controle da iluminação pública, da desorganização e deterioração do espaço físico e da execução de práticas de policiamento preventivo e comunitário.
Em um país do tamanho do Brasil e com culturas e contextos tão diversificados, é até certo ponto natural esperar que a atuação dos municípios, e particularmente das guardas municipais, seja muito diversa. As formas de policiamento exercido pelas guardas ainda tem um contorno pouco claro. O problema maior da ausência de uma delimitação clara são as sobreposições e conflitos interinstitucionais que passam a criar ruídos e possíveis desvios de objetivos no funcionamento das ações institucionais. É o que ocorre com relação às guardas e as polícias militares estaduais.
Embora haja um vasto campo para a ação das guardas municipais na segurança pública, com identidade própria e com imenso potencial de eficácia para o fortalecimento das políticas públicas de segurança, as polícias militares tendem a serem correntemente vistas como um espelho, o modelo institucional a ser buscado. Isso é perceptível no simbolismo, nos ritos internos, no aparato visível de uniformes e viaturas, nos equipamentos e cada vez mais através das atividades desenvolvidas pela corporação, inclusive avançando por meio de articulações políticas para obter reconhecimento legal para o uso de instrumentos e práticas realizadas pelas polícias militares.
Em junho deste ano, por exemplo, a Justiça de São Paulo decidiu pela não utilização, pelas guardas municipais, de bombas de gás lacrimogêneo e uso de balas de borracha, bem como de tomar parte nas ações policiais realizadas na região da Cracolândia, na cidade de São Paulo (atendendo a pedido do Ministério Público de São Paulo, através de uma ação civil junto com a Defensoria Pública)[2]. Em sentido diverso (em relação ao favorecimento ou desfavorecimento de que a GCM possa executar ações que se entendia serem próprias das polícias militares), a decisão no julgamento da ADPF 995 pelo STF, em setembro de 2023, como disposto em seu acórdão, reconheceu as guardas municipais como órgão que exerce atividades de segurança pública (posição consolidada com os votos da primeira turma no início de outubro de 2024). O objeto específico em julgamento, para que houvesse a conclusão acerca desse reconhecimento, foi a legalidade da realização, pelas guardas, de buscas pessoais e domiciliares – em tese atividades exclusivas das polícias militares -, quando necessárias para a conclusão de um flagrante.
Um ponto importante da decisão é a interpretação de que os órgãos a que se reconhece fazer atividades de segurança pública possuem, indistintamente, os mesmos poderes. Não se trata aqui de esmiuçar a leitura do acórdão, que possui aspectos, dentro de uma leitura específica, cabíveis de interpretações críticas também em relação ao outro “lado” do que se pretende destacar aqui. Também não se trata aqui de taxar que a atividade específica da realização de busca pessoal não deveria, em nenhuma hipótese, ser realizada pelas guardas municipais, não é este o ponto. A questão central são os impactos que esse processo como um todo tem para as práticas de policiamento, desconsiderando as especificidades destas em relação aos diferentes órgãos de segurança.
Não se trata apenas do fato de que, em breve, possivelmente outras atividades também passem a incorporar o rol de práticas desempenhadas pelas guardas (como o uso de bombas de gás lacrimogênio e de balas de borracha, da decisão negada pelo TJ de São Paulo – uma vez que o precedente criado deve orientar outras mudanças). Se trata do risco de que, no bojo dessas transformações, sobre de fato pouco espaço para a continuidade e efetivação do desenvolvimento de uma corporação com identidade própria e responsável por ações específicas (e inovadoras) de policiamento, que não serão colocadas em prática por outros entes públicos.
No atual momento de ampliação do ensejo generalizado ao desempenho de ações mais endurecidas, a construção e consolidação desse perfil institucional materializado pelas guardas tende a ser anulado sucessivamente pela indistinção com o perfil das polícias militares. Não há problema, do ponto de vista individual, que muitos integrantes da corporação se orientem em parte por esse espelho – que constitui o modelo tradicionalmente reconhecido de policiamento – no processo de construção dessa identidade. Do ponto de vista institucional, porém, a possibilidade de se perder de vista parte substancial dessa atuação inovadora no campo da segurança pública parece clara, uma vez que nenhum órgão ou corporação é uma panaceia capaz de fazer tudo.
Ao defender as práticas de policiamento das guardas municipais com enfoque cada vez mais próximo ao da polícia militar, pautadas na mimetização do modelo, corre-se o risco de se perder de vista o processo de consolidação da configuração de um perfil das guardas condizente ao atendimento de necessidades práticas de policiamento, focadas nas especificidades municipais. Especificidades nas quais as guardas, consolidando uma identidade própria, com seus planos, pops, capacitação e preparo específico, podem fazer a diferença na composição do modelo de segurança pública.