Múltiplas Vozes 09/10/2024

Proposta para uma nova agenda progressista de segurança na América Latina

Abre-se uma janela de oportunidade para redefinir o quadro de ação em políticas de segurança que não se iniba de avançar com respostas policiais e de controle, mas que também não abandone os princípios democráticos e o Estado de Direito

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Lucía Dammert

Professora Titular do Departamento de Estudos Políticos da Universidade de Santiago, Chile. Doutora em Ciência Política pela Universidade de Leiden

O progressismo latino-americano tem a oportunidade de propor uma nova agenda de segurança cidadã que, retomando os eixos centrais desenvolvidos há mais de duas décadas, consolide uma perspectiva de gestão pública com iniciativas que respondam à preocupação cidadã: o aumento das violências e a consolidação de mercados ilegais. Em um contexto em que parece que as propostas de “mano dura” se afirmaram como únicas alternativas, torna-se politicamente crucial reconhecer que esse tipo de iniciativa não tem resultados sustentáveis e que, progressivamente, contribuem para a erosão dos próprios pilares da democracia e do Estado de Direito.

O presente documento[1] busca revisar os debates sobre o progressismo em segurança e sugerir que o cenário chileno apresenta uma oportunidade para posicionar uma nova agenda de segurança, que seja eficaz e democrática.

O progressismo em segurança

A abordagem progressista da segurança cidadã foi apresentada como uma estratégia integral e equilibrada, que inclui a coordenação de ações de prevenção, resposta, reabilitação e reintegração. No entanto, nesse mesmo contexto, surgia uma profunda discussão sobre a distância entre a proposta progressista “da oposição” e aquela “do governo”. O foco da perspectiva progressista seria, então, a prevenção. Especificamente, propõe-se um modelo de coordenação entre os governos locais e o governo central para a prevenção da violência e do crime. No entanto, esse modelo foi implementado por poucos governos progressistas na região. Além disso, a proposta central de consolidar o controle civil sobre os temas policiais também não foi materializada.

Além dos avanços locais em políticas públicas preventivas, as mudanças foram marginais. As críticas aos paradigmas de segurança promovidos pelos governos progressistas na região se intensificaram na década seguinte. Foi proposta a noção de segurança humana como chave para entender que a segurança se garante quando as populações têm acesso a direitos sociais fundamentais. Nesse contexto, surgiram quatro áreas principais no debate latino-americano sobre as diferenças entre o progressismo e as perspectivas da direita.

  1. Debate entre repressão e prevenção: Enquanto as forças conservadoras costumam favorecer abordagens mais repressivas, que incluem o uso da força, o aumento das penas e a militarização da segurança, o progressismo geralmente defende estratégias preventivas que atacam as causas subjacentes da insegurança, como a pobreza, a exclusão social e a falta de oportunidades econômicas. No entanto, essa diferença não se reflete na prática política progressista.
  2. Militarização da segurança e controle civil: O avanço no uso das Forças Armadas no controle e até na prevenção do crime é evidente em países governados por diferentes orientações ideológicas, e as reformas policiais tornaram-se programas de modernização cujo eixo principal é o aumento do orçamento institucional.
  3. Privatização da segurança: A crescente privatização da segurança na América Latina responde à demanda por proteção de setores privados e das classes médias e altas, mas preocupa os governos progressistas, que veem nisso um risco de aumentar as desigualdades e fragmentar o acesso à segurança. A privatização cria uma dualidade, na qual os mais ricos podem pagar por proteção, deixando as comunidades mais pobres vulneráveis. Apesar dessas preocupações, o processo parece inevitável, levando à colaboração público-privada no uso de tecnologias e na investigação de crimes, uma tendência em governos de diferentes orientações políticas.
  4. Construção de um Estado de bem-estar que inclua a segurança como eixo central: Os governos progressistas buscariam reimaginar a segurança não apenas como uma questão de ordem pública, mas como parte integrante de uma abordagem holística que inclua saúde, educação, emprego e direitos sociais.

Essas contribuições conceituais nem sempre foram plenamente integradas nos programas de governo dos países onde o progressismo conseguiu governar, ou foram implementadas de forma limitada. A situação de segurança no Chile, por exemplo, não foi muito diferente. Diversos elementos contextuais contribuíram para a politização do debate e a dificuldade de estabelecer uma narrativa e políticas públicas diferentes em matéria de segurança. Durante o governo do presidente Boric, a agenda de segurança foi marcada pela aprovação de leis de caráter particularmente punitivista.

A situação da segurança no Chile

No Chile, o medo do crime é uma constante desde o retorno à democracia. A criminalidade mudou notavelmente na última década. Embora a vitimização se mantenha praticamente estável, com cerca de 25% das famílias reconhecendo terem sido vítimas de crimes de maior impacto social no último ano, tudo indica que a forma como os crimes ocorrem mudou: são particularmente mais violentos e com maior uso de armas de fogo. Os problemas enfrentados no espaço público são diversos e, portanto, as políticas públicas altamente centralizadas não são eficazes. É hora de permitir que prefeitos e prefeitas tenham mais recursos e financiamento para projetar e implementar iniciativas que abordem seus principais problemas, tanto na prevenção quanto na coordenação de ações de controle. Para aqueles que afirmam que estamos em uma situação fora de controle devido à criminalidade e que a culpa é dos governantes atuais, a realidade é mais complexa. Entretanto, os dados não permitem concluir se estamos melhores ou piores do que antes.

O contexto de segurança no país mudou em termos de atores, formas de expressão e sua manifestação violenta, o que destaca a necessidade de revisitar a oferta de política pública progressista.

Perspectiva progressista de segurança

A experiência da maioria dos países da região demonstra que as políticas de “mano dura” não funcionam. De fato, as informações mais confiáveis indicam que, por exemplo, o uso das forças armadas para patrulhamento não gera mudanças significativas nos homicídios. Estamos insistindo em medidas que sabemos que não funcionam, mas que parecem responder à ansiedade dos cidadãos e ao desespero político.

A hegemonia do discurso “mano dura” e o relativismo sobre o papel das instituições e da lei apresentam sérios perigos para a democracia, que precisam ser reconhecidos. Assim, abre-se uma importante janela de oportunidade para redefinir o quadro de ação em políticas de segurança que não se iniba de avançar com respostas policiais e de controle, mas que também não abandone os princípios democráticos e o Estado de Direito.

Na redefinição de uma nova agenda progressista, são necessários alguns eixos centrais de ação:

  • Implementar políticas adaptadas às realidades locais, com metas claras e transparência nos resultados.
  • Focar também em violências diárias, como nas escolas e contra mulheres, além do crime organizado.
  • Priorizar políticas preventivas para crianças e jovens, oferecendo educação e trabalho, em vez de encarceramento.
  • Combater o crime organizado em áreas específicas com maior presença do Estado e ações coordenadas.
  • Não focar exclusivamente no tráfico de drogas; abordar também outros mercados ilícitos.
  • Melhorar a infraestrutura prisional e adotar alternativas ao encarceramento para evitar a expansão da criminalidade nas prisões.
  • Aumentar a transparência e a responsabilidade das forças policiais, estabelecendo metas claras.
  • Definir claramente onde e como as Forças Armadas podem atuar em segurança, como na proteção de fronteiras.
[1] DAMMERT, Lucía. Propuestas para una nueva agenda progresista de seguridad. Notas de Coyuntura N° 6. Santiago: Fundación Horizonte Ciudadano, Fundación Friedrich Ebert, 2024. Disponível em: <https://www.horizonteciudadano.cl/publicaciones/notas-de-coyuntura-n-6>.

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