Juliana Brandão
Doutora em Direitos Humanos pela USP e pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
E se levássemos a sério aquele compromisso de criança ser apenas criança? O Dia das Crianças se aproxima, mas parece que ainda falamos pouco das infâncias, no plural mesmo.
Aquela história de escolher qual o brinquedo, de comer tantos doces até chegar a dor de barriga, hoje convive no Brasil, simultaneamente, com um contexto dramático no qual meninas são as maiores vítimas de violência sexual e meninos não alcançam a fase adulta, pela violência do Estado. Dados do último Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostraram que, em 2023, 56,8% das vítimas de estupro são negras e 88,7%, do sexo feminino. 61,4% têm entre 0 e 13 anos de idade. Nas mortes violentas intencionais, 76,9% das vítimas são negras, 50,2% têm entre 12 e 29 anos e 91,4% são do sexo masculino. Trocando em miúdos, podemos falar nos privilégios da branquitude e nos atravessamentos do racismo.
Diferentemente do que acontece na ficção, a ausência dos cuidadores principais impacta e recrudesce esse cenário de tamanha desigualdade. Elza, a princesa do gelo, encontrou a redenção após se reconciliar com os poderes mágicos herdados de sua mãe. Harry Potter, o bruxo boa praça, criado pelos tios, cumpre a sua jornada de herói. E não é um detalhe – personagens todos brancos.
Na vida real, a história que trago é de dois meninos negros, sob cuidados parentais exclusivos do pai, imigrante de um dos países da África Central. A mãe, por razões que aqui fogem do propósito da nossa discussão, não mais convivia com esses filhos. Trabalhando como ambulante em uma grande cidade brasileira, vendendo bonés, o pai foi tocando a vida como pôde, em moradia precária, sem qualquer rede de apoio.
Um mal súbito acomete o pai. O mais velho aciona o SAMU. Era pandemia. Chega o resgate, são feitos os primeiros socorros. Os dois meninos são deixados sozinhos, sem informação sobre a internação do pai. Não se buscou também qualquer referência de adulto responsável por essas crianças.
Diante da demora por notícias, os meninos buscam ajuda de uma vizinha que localiza o pai, que falece horas depois. Começam as buscas por parentes que possam assumir os cuidados das crianças em orfandade. A mesma vizinha localiza uma tia das crianças, que mora no hemisfério norte. Os meninos não falam inglês e a tia nada sabe de português…
A demanda e a responsabilidade de assumir os cuidados de duas crianças em orfandade, sem apoio, diminuem as possibilidades de uma família substituta. Na contramão dos nossos personagens fictícios, que acabam tendo trajetórias gloriosas, aqui os garotos herdam uma ancestralidade desprestigiada e invisibilizada, com as marcas da diáspora africana.
E o caso segue sem desfecho, para além da crueza e objetividade grafados com exatidão na certidão de óbito do pai: “morre e deixa dois filhos.” Diante disso, pode vir a pergunta – mas…e o Sistema de Garantia de Direitos, não atuou? Reacomodado pelas circunstâncias, o caso foi esquecido pelas estatísticas oficiais.
A existência dessas crianças, hoje dependentes de ajudas comunitárias, sem a presença do Estado, vai fazê-las lembrar de que há infâncias e infâncias…Quisera fosse uma exceção a subnotificação de registros acerca das violações de direitos.
A existência digna, aquela em que a infância protegida também passa pelo brinquedo e pelo doce, mas a eles não se resume, é horizontes que precisam estar ao alcance de todas e todos. Enquanto isso é um projeto, compartilho o desejo de Tom Zé, de que a felicidade se espalhe pelos homens, no sentido da humanidade, com respeito à condição de criança, comida na mesa, acesso a estudo e lazer, saúde, moradia, enfim, proteção. Acrescentaria ainda que a marca da raça não opere como um marcador da desigualdade, que não seja sinônimo de maior vulnerabilidade, tampouco de inferioridade. E que os erês inspirem a construção de caminhos leves e seguros.