Segurança Pública na Amazônia 24/07/2024

Violência sexual contra criança e adolescente na Amazônia: um panorama no Arquipélago do Marajó

Entre 2018 e 2022, foram registrados 1.094 casos de violência sexual, especificamente os crimes de estupro (15,16%) e estupro de vulnerável (84,84%), contra crianças e adolescentes, ocorridos no Arquipélago do Marajó

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Alethea Maria Carolina Sales Bernardo

Doutoranda em Teoria do Comportamento (UFPA). Mestre em Segurança Pública (UFPA). Escrivã de Polícia Civil do Estado do Pará

Ariane Lilian Lima dos Santos Melo Rodrigues

Mestre em Segurança Pública (UFPA). Delegada de Polícia Civil do Estado do Pará

A violência sexual contra criança e adolescente pode ser conceituada como qualquer conduta que exponha as vítimas à realização ou observação de conjunção carnal, ato libidinoso, exposição do corpo por qualquer meio, inclusive virtual, os quais podem ensejar situações de estupro, abuso sexual, exploração com fins remuneratórios e tráfico de pessoas.

O Brasil pode ser citado como uma referência na proteção legislativa a crianças e adolescentes, em razão da evolução da proteção jurídica. Contudo, na prática, por motivos diversos, dentre os quais a abrangência geográfica do país, percebe-se uma ineficácia ou mesmo ausência de políticas públicas que efetivem as garantias presentes nas legislações.

Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mais de meio milhão de pessoas registrou ter sido vítima de violência sexual no Brasil entre os anos de 2012 e 2021.  No ano seguinte (2022), foram gravados mais de 75 mil casos, a maior taxa de registro da história.

Deste percentual identificado em 2022, 61,4% são meninas e possuem menos de 13 anos, o que configura um quadro alarmante no que tange à violência sexual contra crianças e adolescentes no país, contexto fortalecido pelo modelo patriarcal e/ou sexista, existente na sociedade, que estimula o desenvolvimento de poder para a categoria dominante dos homens. Consequentemente, isso estimula a violência.

O Estado do Pará foi classificado como uma das seis Unidades da Federação que mais registraram violência sexual contra menores de 18 anos, chegando a um total de 4.557 casos. Apesar de chocante, estima-se que tal número esteja muito aquém da realidade. Dados do IPEA indicaram que menos de 10% dos casos de estupro no Brasil são reportados à polícia.

Entre 2018 e 2022, foram registrados 1.094 casos de violência sexual, especificamente os crimes de estupro (15,16%) e estupro de vulnerável (84,84%), contra crianças e adolescentes, ocorridos no Arquipélago do Marajó.

Situado ao norte do Estado do Pará, Marajó é o maior arquipélago fluviomarítimo do planeta, com área de 106.662 quilômetros quadrados, equivalente a 8,6% do território paraense. Lá se concentram 6,9% da população estadual.

Os rios amazônicos compõem a dinâmica de vida naquela região. A dificuldade de acesso a comunidades ribeirinhas e a constante presença de balsas trafegando pelos rios, sem a fiscalização suficiente dos órgãos estatais competentes, reduzem o risco de flagrantes de crimes de violência sexual.

Administrativamente o Pará é dividido em 15 Regiões Integradas de Segurança Pública e Defesa Social (RISPs) para harmonizar as circunscrições de atuação, objetivando a articulação territorial regional nos níveis estratégico, tático e operacional. O Arquipélago encontra-se distribuído entre a 5ª RISP –Marajó Oriental, composta pelos municípios: Cachoeira do Arari, Muaná, Ponta de Pedras, Salvaterra, Santa Cruz do Arari e Soure e a 8ª RISP –Marajó Ocidental, composta pelas cidades: Afuá, Anajás, Bagre, Breves, Chaves, Curralinho, Gurupá, Melgaço, Portel e São Sebastião da Boa Vista.

O Marajó Ocidental agregou pouco mais da metade dos casos de violência sexual contra criança e adolescentes: 54,30%, contra 45,70% de Marajó Oriental. Quando observamos o percentual de registros por cidade, identifica-se a prevalência nas cidades de Soure, sede da 5ª RISP, e Breves, sede da 8ª RISP, locais onde se encontram instaladas Delegacias Especializadas em Atendimento à Criança e ao Adolescente, demonstrando a devida importância do serviço especializado como estímulo para denúncias dos casos. Destaca-se que nas demais localidades a demanda é atendida pela delegacia da cidade, responsável pela investigação de todos os crimes ocorridos na circunscrição.

 

Figura 1– Quantidade e percentual de Boletins de Ocorrência Policial de violência sexual contra criança e adolescente, ocorrido no Arquipélago do Marajó, entre os anos de 2018 e 2022, por município.
Fonte: Construção das Autoras a partir de informações da Secretaria Adjunta de Inteligência e Análise Criminal (SIAC)

 

Importante ressaltar que o baixo quantitativo de registros de ocorrência policial nas demais cidades, como Anajás, Melgaço e Santa Cruz do Arari, em cinco anos, não necessariamente indica a inocorrência dos delitos estudados, sugerindo a presença de subnotificação dos casos, por diversos motivos, principalmente a falta da rede de proteção bem estabelecida e a dificuldade de acesso aos serviços de saúde pública e sistema de garantia de direitos.

Essa interpretação coaduna com as pesquisas de vitimização, que indicam que os casos de violência sexual contra criança e adolescente já contam normalmente com baixíssima notificação, conforme o Unicef e o Instituto Sou da Paz, de modo que os registros policiais sinalizam apenas a ponta do iceberg de violações que ficam ocultas nas estatísticas oficiais.

Em relação ao sexo e escolaridade das vítimas, conforme a tabela 1, a maior parte foi identificada como meninas adolescentes em alta vulnerabilidade social e baixa escolaridade, dado que confirma o panorama marajoara identificado na CPI da Pedofilia, no qual 90% das vítimas eram do sexo feminino, com idade entre 12 e 17 anos.

 

Tabela 1– Quantidade e percentual de Boletins de Ocorrência Policial de violência sexual contra criança e adolescente, ocorrido no Arquipélago do Marajó, entre os anos de 2018 e 2022, por sexo, escolaridade e faixa etária da vítima.
Fonte: Construção das Autoras a partir de informações da SIAC

 

Ainda analisando a tabela, os dados apontam que apenas 12,57% das vítimas possuem o Ensino Fundamental Completo, apesar de a maior parte ser adolescente, na contramão do que determina a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que determina que o Ensino Médio deve ser iniciado aos 15 anos de idade. Cenário de fácil compreensão quando observado que o Arquipélago é o sexto colocado no ranking estadual de abandono escolar.

 

Figura 2– Percentual de Boletins de Ocorrência Policial de violência sexual contra criança e adolescente, ocorrido no Arquipélago do Marajó, entre os anos de 2018 a 2022, por local do fato.
Fonte: Construção das Autoras a partir de informações da  SIAC ( 2023)

 

Para crianças e adolescentes, o domicílio, local de vivência familiar, é referência de segurança e proteção. No entanto, 75% dos casos ocorreram em residências das vítimas,  o que acaba por dificultar a denúncia dos crimes que ocorrem nesse ambiente, por ser privado e de acesso restrito, principalmente quando a vítima não tem conhecimento sobre os tipos de violações que pode sofrer.

 

Figura 3– Percentual de Boletins de Ocorrência Policial de violência sexual contra criança e adolescente, ocorrido no Arquipélago do Marajó, entre os anos de 2018 e 2022, por autor da violência.
Fonte: Construção das Autoras a partir de informações da SIAC ( 2023)

 

Padrasto e ex-padrasto somam um percentual de 22,43% dos autores do crime; aos pais corresponde um percentual de 13,08%, que lhes coloca na liderança da lista. Percebe-se que a relação das vítimas com os autores envolve um vínculo de cuidado, poder ou dependência. O fato de o autor ser conhecido da vítima torna o fenômeno mais complexo no tocante ao enfrentamento, uma vez que a violência é praticada por quem tem dever legal e moral de proteção.

Outro dado importante está relacionado ao percentual de 13,46%, composto por autores que mantinham relação íntima de afeto, inferindo-se a cruel realidade do namoro ou casamento infantil. O Brasil foi identificado como o quarto país no ranking mundial; o Pará representou 29% dos casos desse fenômeno.

Foram identificados, portanto, o agravamento da violência sexual e uma falha gravíssima ao Princípio da Proteção Integral, no contexto da violência doméstica, vez que a violação sexual é um crime contra a infância, ocorrido no interior das residências, cometid0 por um homem adulto, dentro do contexto familiar.

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