Atlas da Violência 03/07/2024

Violência contra pessoas com deficiência

PCD enfrentam alto risco de sofrer várias formas de abuso e violência ao longo da vida, incluindo tipos específicos relacionados à deficiência e ao gênero

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Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADc) de 2022, cerca de 18,6 milhões de pessoas no Brasil possuíam alguma forma de deficiência, o que representa 8,9% da população. Esse é um contingente com características funcionais distintas que se manifestam em diferentes categorias de deficiência, como física, mental, intelectual, visual e auditiva.

Ao longo das últimas décadas, houve um foco crescente em instrumentos normativos voltados para garantir os direitos desse segmento da população, como a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (lei nº 13.146, de 2015) – marcos importantes na promoção e defesa dos direitos das pessoas com deficiência e suas diversas manifestações de funcionalidade.

A violência contra pessoas com deficiência é um relevante problema público e uma clara violação de direitos humanos (Araten-Bergman; Bigby, 2023). Este grupo enfrenta um alto risco de sofrer várias formas de abuso e violência ao longo de suas vidas, incluindo tipos específicos relacionados à deficiência e ao gênero, como retenção de medicamentos, o excesso de medicação e a negligência das necessidades básicas diárias, como higiene pessoal e cuidados médicos e violência sexual (Plummer; Findley, 2012).

Vários fatores contribuem para a persistência da violência contra pessoas com deficiência. As desigualdades de poder nas interações entre indivíduos com e sem deficiência resultam em uma maior fragilidade para os primeiros, aumentando sua suscetibilidade à violência. Processos como institucionalização, segregação, estigmatização, preconceito e discriminação, que culminam em exclusão social, permeiam as experiências de opressão e violência direcionadas a esse grupo. Além disso, a interseccionalidade da deficiência com outras características sociais, como gênero, raça/etnia, idade e classe social, amplifica a vulnerabilidade de certos indivíduos dentro dessa população (Gesser; Bock; Lopes, 2020).

O abuso de pessoas com deficiência é um tema historicamente pouco examinado e pouco pesquisado, especialmente no Brasil (Wanderer; Pedroza, 2015). A falta de reconhecimento social e a invisibilidade que marcam essas pessoas levam a uma apatia diante da violação de seus direitos fundamentais. O propósito deste artigo é, portanto, abordar a violência contra pessoas com deficiência, explorando como ela afeta homens e mulheres de maneiras distintas e como atinge de forma variada também os diferentes tipos de deficiência e faixas etárias, contribuindo para lançar luz sobre esse problema social.

Estatísticas sobre pessoas com deficiência que sofrem violência

De acordo com a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, casos de suspeita ou de confirmação de violência praticada contra a pessoa com deficiência devem ser objeto de notificação compulsória pelos serviços de saúde públicos e privados à autoridade policial e ao Ministério Público, além dos Conselhos dos Direitos da Pessoa com Deficiência.

Este artigo utilizou duas bases de dados para a construção de estatísticas sobre violências contra pessoas com deficiência, em números absolutos de notificações e em taxas relativas ao tamanho da população. A primeira base foi o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), pertencente ao Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (Viva). A Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2013, realizada pelo IBGE, foi a segunda base de dados consultada de onde foram obtidos os números da população com deficiência projetado para 2022, a partir das proporções da população com deficiência estimadas pela PNS 2013.

As estatísticas mais alarmantes de violência notificada estão ligadas às pessoas com deficiência intelectual, conforme se pode observar no Gráfico 8.1. Os dados revelam que a taxa de violência contra esse grupo é de 36,9 por cada 10 mil indivíduos com deficiência, enquanto para aqueles com deficiência física é de 12,0, para os com deficiência auditiva é de 3,8 e para os com deficiência visual é de 1,5. É importante ressaltar que as mulheres são as mais afetadas em todos os grupos de deficiência em comparação com os homens, sendo que as mulheres com deficiência intelectual enfrentam taxas que ultrapassam em mais que o dobro as dos homens na mesma condição, exceto no caso da deficiência visual, em que os valores são mais próximos.

Contexto/autoria da violência

O Quadro 8.1 apresenta cinco grupos de violência, a partir dos autores presumidos no Sinan. Os grupos de “contexto/autoria” foram estabelecidos com base na classificação delineada pelo guia do Ministério da Saúde (Brasil, 2016a), aderindo às definições da Organização Mundial da Saúde (OMS) para três categorias principais de violência: autoprovocada, interpessoal (abrangendo casos domésticos e comunitários) e coletiva. É importante ressaltar que as notificações referentes à violência autoprovocada não foram consideradas, como mencionado anteriormente.

O Gráfico 8.2 ilustra o volume de notificações de violência contra pessoas com deficiência, classificadas por tipo de deficiência e grupo de contexto/autoria, para o ano de 2022. Observa-se que a violência doméstica lidera com o maior número de notificações, totalizando 8.302 registros, seguida pela violência comunitária, com 3.481 registros. O tipo misto contabilizou 2.359 registros, enquanto a violência institucional foi responsável por 458 notificações.

Em relação ao tipo de deficiência, pessoas com transtorno mental apresentaram o maior número de ocorrências de violência doméstica, com 3.662 notificações, seguidas pelas pessoas com deficiências múltipla e física, com 1.425 e 1.403 notificações, respectivamente. As pessoas com deficiências física e visual registraram o maior percentual de violência doméstica, em relação aos demais tipos de violência (65,4% e 63% de ocorrência, respectivamente). As mulheres foram mais vitimadas em todos os tipos de violência, sendo que, na violência doméstica, o registro de notificações chegou a ser 2,6 vezes maior em relação aos homens.

O Gráfico 8.3 fornece uma análise das notificações de violência em relação ao contexto/autoria, considerando diferentes faixas etárias. Entre os 0 e 9 anos de idade da vítima, o percentual de registros é de 7,9%, aumentando para 21,3% na faixa etária seguinte, de 10 a 19 anos. Nos grupos etários subsequentes, observa-se uma diminuição gradual, com 15,8% entre 20 e 29 anos, 14,7% entre 30 e 39 anos e 13,9% entre 40 e 49 anos, atingindo 4,4% para 80 anos ou mais.

Destaca-se que a faixa etária de 10 a 19 anos foi a que apresentou maior registro de notificações de violência, sendo a violência doméstica o tipo predominante, seguido pela violência comunitária. A violência institucional apresentou maior número de notificações entre os homens nas faixas etárias de 0 a 9 anos, 30 a 49 anos e entre 60 e 79 anos. Além disso, na faixa etária de 60 a 69 anos, houve um maior número de notificações de violência comunitária contra homens do que contra mulheres. Em todas as outras faixas etárias e tipos de violência, as mulheres foram as principais vítimas.

Natureza da violência

Para abordar a “natureza da violência”, foram adotados os cinco grupos de violência identificados pelo Ministério da Saúde (Brasil, 2016a): i) Violência física; ii) Violência psicológica (abrangendo aspectos financeiros/econômicos); iii) Violência sexual; iv) Negligência/Abandono; v) Outras formas de violência (englobando tortura, tráfico de seres humanos, trabalho infantil, intervenção legal e outras).

O Gráfico 8.4, que detalha o número de notificações de violência contra pessoas com deficiência com base no tipo de deficiência e na natureza da violência, revela que a violência física foi a mais frequentemente relatada, representando 55,3% dos registros. Em seguida, está a violência psicológica, com 31,7% do total de notificações, seguida pela violência sexual, com 23%.

O transtorno mental registrou as taxas mais elevadas de notificações em todas as categorias de violência, sendo a violência física a mais comum nesse grupo, com 60% dos registros. As pessoas com deficiência física foram mais frequentemente alvo de violência física do que de outros tipos, enquanto a violência sexual foi mais registrada entre os grupos de pessoas com deficiência intelectual e múltipla (37% e 25,1%, respectivamente).

O Gráfico 8.5 apresenta o número de notificações de violência contra pessoas com deficiência, categorizadas por natureza da violência e faixa etária. Destaca-se que a faixa etária de 10 a 19 anos registrou o maior número de notificações de violência, sendo a violência sexual a mais prevalente nesse grupo etário. Quanto à negligência/abandono, verifica-se que os extremos de idade foram as faixas etárias mais afetadas por esse tipo de violência, com índices elevados entre 0 e 19 anos e entre 60 anos ou mais. A violência física apresentou maior registro de notificações entre os 20 e 49 anos, quando comparado às demais violências.

No que diz respeito à comparação entre homens e mulheres, a violência sexual foi mais registrada entre as mulheres, especialmente na faixa etária de 10 a 19 anos. O número de notificações de violência de natureza sexual chegou a ser quase sete vezes maior para mulheres do que para homens (3.064 notificações para mulheres e 442 para homens). Para estes, a violência física foi mais presente, representando 54,0% dos registros. Em seguida, a negligência e o abandono foram responsáveis por 34,6% das notificações entre os homens, enquanto entre as mulheres esse tipo de violência foi registrado em 17,1% das notificações.

Considerações finais

Com base na análise dos dados da saúde pública relacionados à incidência de violência contra pessoas com deficiência no Brasil, percebe-se que as notificações de violência são mais comuns entre mulheres com deficiência do que entre homens na mesma condição, especialmente no que diz respeito à violência sexual e doméstica. Para as mulheres com deficiência, além das formas comuns de violência compartilhadas com mulheres sem deficiência, existem especificidades como isolamento social, dependência de cuidadores e serviços, tipo e grau de funcionalidade da deficiência, e a incapacidade de se defender fisicamente, todos contribuindo para um maior risco de violência (Mello; Nuernberg, 2012).

Além disso, é fundamental destacar a vulnerabilidade das pessoas com deficiência intelectual, um grupo com taxas alarmantes de notificação de violência, especialmente de violência sexual, em comparação com outras categorias de deficiência. Os indivíduos com transtornos mentais frequentemente são estigmatizados devido à falsa crença de que representam perigo ou são propensos à violência, o que os torna mais suscetíveis a serem vítimas de abusos e agressões.

Em relação à faixa etária, os dados revelam uma maior vulnerabilidade das pessoas com deficiência entre 10 e 19 anos, com a predominância de violência doméstica e comunitária nesse grupo. Nos extremos de idade, nota-se um padrão preocupante de negligência e abandono, mais comum entre crianças de 0 a 9 anos e idosos com 60 anos ou mais. Especificamente entre as meninas na faixa etária de 10 a 19 anos, a incidência de violência sexual é particularmente acentuada em comparação com meninos da mesma idade.

No que diz respeito às mulheres com deficiência, estudos indicam que um nível mais elevado de escolaridade está associado a uma maior capacidade de defesa contra a violência. Além disso, pertencer a movimentos associativos de pessoas com deficiência e ter emprego remunerado fora de casa também são medidas preventivas eficazes. Por outro lado, o recebimento de benefícios financeiros do governo pode representar um fator de risco para a violência doméstica e sexual para essas mulheres, dado que os agressores muitas vezes buscam controlar os recursos econômicos de suas parceiras (Zamora Arenas; Millán Jiménez; Bote, 2023).

Em conclusão, é fundamental a adoção de medidas estratégicas de prevenção e proteção da violência contra pessoas com deficiência e a implementação de políticas públicas eficazes de detecção e intervenção para assegurar o cuidado adequado às vítimas. Uma vida livre de violência e com igualdade de oportunidades é o que se almeja para todas as pessoas com deficiência, independentemente de gênero, raça ou etnia, posição social, idade ou tipo de deficiência.

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