Juliana Brandão
Doutora em Direitos Humanos pela USP e pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
A Natalina, menina negra de Conceição Evaristo, ia fazer 14 anos. Cuidava dos irmãos menores. Alguma coisa ia crescer lá na barriga dela e ela não queria. A mãe da menina se perguntava como iria cuidar de mais uma criança, numa casa em que já havia tanta gente. Ela se perguntava o que iria fazer com o filho da filha.
O que poderia ser a arte imitando a vida é, na verdade, um retrato fiel e também uma denúncia – nossas meninas negras têm estado fora da proteção que lhes permitiria ser apenas… meninas.
Quando estamos frente à violência sexual, para qual infância e para qual maternidade estamos olhando? Narrativas de violência que desviam do recorte racial fazem parecer que todas meninas e mulheres fruem dos mesmos direitos. Tomando a regra como exceção, uma vez mais, o racismo opera como amálgama que aprofunda a desigualdade.
No entanto, a despeito desse quadro, assistimos nas últimas semanas à tentativa de aprovação, em regime de urgência, do Projeto de Lei 1904/24 que, entre outras matérias, modificaria o regramento do aborto legal. Uma vez consolidado em lei, inviabilizaria, na prática, as chances já diminutas de interrupção de gravidez resultante de estupro. Grande mobilização social impactou a continuidade da tramitação do PL antiaborto. Porém, ainda resiste a insegurança de retomada dessa pauta, uma vez que referida proposição legislativa não foi arquivada.
Entre 2012 e 2022, crianças representaram 65,1% das vítimas de violência sexual. (Atlas da Violência, IPEA/FBSP, 2024). Os casos de estupro de vulnerável explodiram em 2022, na marca de 61,4%, para vítimas de até 13 anos. E, das 88,7% vítimas do sexo feminino, 56,8% são negras (Anuário Brasileiro de Segurança Pública, FBSP, 2023).
No Brasil, a previsão do aborto legal encontra no Código Penal vigente a garantia de que a gestação em caso de estupro é sim juridicamente reprovável e não precisa seguir.
É certo que estamos diante de tema complexo. Longe de simplificar essa conversa, precisamos revisitar valores que nos lembram que a vida em sociedade não se esgota em convicções pessoais. Portanto, é necessário que se diga – o que parece apenas um singelo ajuste legislativo tem destinatárias certas – as vítimas de estupro que, no Brasil, majoritariamente são as meninas negras.
Para tornar mais atraentes e palatáveis as medicações amargas, os farmacêuticos as embrulhavam em papel dourado, daí o “dourar a pílula”. No estupro, que hoje acomete crianças e adolescentes, as fraturas físicas e psíquicas são indeléveis. Ter o corpo invadido e visto apenas como invólucro esvazia a dignidade da vida. Não há remédio que cure essa tragédia, nem maquiagem que disfarce essa ferida. Mas cuidar melhor do pós-trauma, enquanto cuidamos também de evitá–lo, não é só possível como necessário. É necessário garantir direitos sexuais e reprodutivos para que a clandestinidade do aborto deixe de ser uma opção. E, igualmente, para que a classe social não seja mais um fator de exclusão do direito de escolha.
Criança não é mãe. Estuprador não é pai. Direito não é opinião. Nosso pacto civilizatório exige manutenção constante. Aborto é discussão urgente, não comporta retrocessos. Traz impactos na segurança e na saúde pública. Precisamos fazer valer a prioridade absoluta para todas crianças e adolescentes.