Atlas da Violência 19/06/2024

Atlas da Violência indica que mais de 48 mil mulheres foram assassinadas no Brasil em uma década

A estabilidade na taxa de homicídios de mulheres em casa, a despeito da redução da taxa de homicídios fora das residências, indica a necessidade de combate mais específico à violência doméstica, que muitas vezes se manifesta em formas menos graves de violência antes de se consumar o resultado letal

Compartilhe

Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

Na última década (2012-2022), ao menos 48.289 mulheres foram assassinadas no Brasil. Somente em 2022, foram 3.806 vítimas, o que representa uma taxa de 3,5 casos para cada grupo de 100 mil mulheres. Ainda que o Brasil tenha atingido a menor taxa de homicídios de mulheres da década, enquanto a taxa geral (de homens e mulheres) caiu 3,6% entre 2021 e 2022, os homicídios de mulheres não apresentaram essa melhora nos índices. O que os dados indicam é que não houve variação da taxa entre 2021 e 2022, permanecendo no patamar de 3,5 mortes para cada 100 mil mulheres brasileiras.

Enquanto no país a taxa de homicídios de mulheres entre 2021 e 2022 não sofreu variação, a análise subnacional revela um cenário mais heterogêneo. Treze das 27 Unidades da Federação reduziram suas taxas de homicídios femininos, sendo que a diminuição mais significativa ocorreu no estado do Tocantins (-24,5%), seguido pelo Distrito Federal (-24,1%) e Acre (-20,3%). Na direção oposta, 12 UFs registraram aumento nos homicídios de mulheres em 2022 em comparação com o ano anterior, sendo que as variações mais expressivas foram observadas nos estados de Roraima (52,9%), Mato Grosso (31,9%) e Paraná (20,6%). Em dois estados, Goiás e Santa Catarina, as taxas permaneceram estáveis, acompanhando a tendência nacional.

Outro ponto de alerta é que apenas seis das 27 Unidades da Federação apresentaram taxas de homicídios femininos abaixo da taxa nacional em 2022: São Paulo (1,5), Distrito Federal (2,2), Minas Gerais (2,5), Santa Catarina (2,5), Rio de Janeiro (2,8) e Sergipe (2,9). Por outro lado, 20 estados superaram a taxa nacional de homicídios de mulheres, sendo que as três piores taxas foram observadas em Roraima (10,4), Rondônia (7,2) e Mato Grosso (6,2), conforme apontado no Gráfico 5.2. Os três estados também estão entre aqueles onde a violência letal contra mulheres mais cresceu em relação ao ano anterior, com aumentos de 52,9%, 20,0% e 31,9%, respectivamente.

Chama atenção que esses três estados estejam localizados na área da Amazônia Legal, região que tem se destacado pelos elevados índices de homicídios nos últimos anos. De acordo com a 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2023), as taxas de Mortes Violentas Intencionais na Amazônia Legal foram 54% superiores à média nacional. No mesmo sentido, os dados aqui apresentados apontam para a necessidade de se olhar mais especificamente para a violência contra as mulheres nessa região.

Em um país de dimensões continentais como o Brasil, compreender as nuances de violência de cada região e suas especificidades é crucial para orientar a formulação de políticas públicas mais eficazes. Para além das nuances regionais, é preciso também um olhar direcionado para as particularidades da violência contra a mulher enquanto fenômeno.

Homicídios de mulheres nas residências

Uma das principais características que permitem a melhor compreensão das dinâmicas que influenciam a violência letal contra mulheres é o local de ocorrência da morte. Em geral, é possível afirmar que a maioria dos homicídios que acontecem dentro das residências é cometida por autores conhecidos das vítimas, de forma que, neste capítulo, utilizamos o número de homicídios de mulheres ocorridos nas residências como uma proxy de feminicídio. Os dados do SIM não diferenciam feminicídio de homicídio, assim, o uso dessa proxy (isto é, de uma variável substituta) é uma tentativa de capturar os feminicídios que compõem os homicídios de mulheres, mesmo que esses casos não sejam explicitamente identificados como tal nos registros, representando uma inferência dos casos de feminicídios.

O conceito de feminicídio surge pela primeira vez na década de 1970, utilizado pela socióloga Diana Russell diante do Tribunal Internacional de Crimes contra as Mulheres, definido pela autora como o assassinato de mulheres por homens pelo fato de serem mulheres. Desde então, o termo tem sido difundido e incorporado às legislações de diversos países, incluindo do Brasil, que integrou a categoria ao Código Penal em 2015 através da lei nº 13.104. Aqui, o feminicídio foi criado como uma qualificadora do crime de homicídio doloso, definido como o homicídio contra a mulher motivado pelo contexto de violência doméstica ou pelo menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Assim, embora o feminicídio exista na legislação brasileira, não é possível identificar os casos assim qualificados a partir dos registros de declaração de óbitos, uma vez que a tipificação do crime deve ser feita no âmbito do sistema de justiça criminal, e não do sistema de saúde. Buscamos, portanto, uma aproximação do fenômeno dos assassinatos de mulheres por motivações relacionadas a seu gênero ao analisar os homicídios femininos ocorridos nas residências. Como indica o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, cerca de 70% dos feminicídios identificados pelas polícias civis foram cometidos dentro de casa (FBSP, 2023).

De acordo com os registros de óbitos, 34,5% dos homicídios de mulheres ocorreram em domicílios,[1] totalizando 1.313 vítimas em 2022. Esse percentual se aproxima da proporção de feminicídios identificados pelas polícias brasileiras em relação ao total de homicídios femininos, que em 2022 chegou a 36,6% (FBSP, 2023). Entre as mulheres, o domicílio representa o principal tipo de local de ocorrência do homicídio, enquanto entre os homens a maior parte dos casos ocorre na rua ou estrada. Isso demonstra a existência de diferentes dinâmicas de homicídios a depender do gênero da vítima, de forma que as mulheres estão mais sujeitas à violência letal dentro de casa do que nas ruas. Em 2002, entre os homens, somente 12,7% dos homicídios ocorreram nas residências.

O Gráfico 5.3 ilustra a evolução da taxa de homicídios de mulheres no país segundo o local de ocorrência. Enquanto a taxa de homicídios femininos fora das residências passou de 3,5 em 2012 para 2,3 em 2022, a taxa de homicídios ocorridos dentro da residência ficou estável em 1,2. Ou seja, no período considerado, os homicídios de mulheres fora das residências diminuíram 34,2% na década, ao passo que os casos nas residências permaneceram constantes. Isso indica que, embora tenhamos observado uma queda na taxa geral de homicídios femininos na última década, os casos motivados por razões de gênero permaneceram estáveis.

Essa análise aponta para um importante problema para as políticas públicas, uma vez que os homicídios motivados pelo gênero da vítima ensejam outras abordagens, em comparação com os assassinatos relacionados a questões como a violência urbana. De fato, homicídios femininos e feminicídios, em geral, diferem em diversas características, como idade da vítima, tipo de instrumento utilizado, local da ocorrência e relação entre autor e vítima (FBSP, 2023). A estabilidade na taxa de homicídios de mulheres em casa, a despeito da redução da taxa de homicídios fora das residências, indica a necessidade de combater mais especificamente a violência doméstica, que muitas vezes se manifesta em formas menos graves de violência antes de atingir o resultado letal.

Homicídio de mulheres negras e não negras no Brasil

Como se sabe, o racismo é um dos problemas sociais de maior gravidade no Brasil. Suas consequências são imensas, variadas e de diferentes graus. Um dos modos como historicamente elas aparecem no campo da segurança pública é por meio das altas taxas de homicídio de pessoas negras, em comparação com pessoas não negras. No fenômeno da violência letal contra a mulher, o cenário não é diferente.

Em 2022, do total de homicídios de mulheres registrados pelo sistema de saúde, as mulheres negras corresponderam a 66,4% das vítimas. Em números absolutos, foram 2.526 mulheres negras assassinadas. Naquele ano, a taxa de homicídio de mulheres negras foi de 4,2 por grupo de 100 mil, enquanto a taxa para mulheres não negras foi de 2,5. Isso significa dizer que mulheres negras tiveram 1,7 vezes mais risco de serem vítimas de homicídio, em comparação com as não negras, conforme apontado no Gráfico 5.4.

Em 17 UFs as taxas de homicídio de mulheres negras superaram a taxa nacional em 2022. As três mais altas foram encontradas em Rondônia (7,5), Ceará (7,2) e Mato Grosso (6,9), sendo que este último teve sua taxa maior do que a nacional em todos os últimos 10 anos.

Analisando o comportamento das taxas de homicídio de mulheres segundo raça/cor na última década (2012-2022), é possível perceber, de maneira geral, uma queda das taxas: a redução para mulheres negras e não negras foi respectivamente de 25,0% e 24,2%. Na variação interanual, a taxa de homicídio de mulheres negras registrou declínio de 2,3%, enquanto no caso de mulheres não negras houve aumento de 4,2%.

Ainda que os dados apontem para essa diminuição da taxa de homicídio de mulheres negras, em alguns estados o caminho foi o oposto, indicando aumento da taxa. São eles: Ceará (que teve um crescimento de 100% da taxa), Piauí (48,4%), Roraima (31,8%), Rio Grande do Norte (16,3%), Maranhão (11,4%), Rondônia (10,3%), Mato Grosso (7,8%) e Rio Grande do Sul (2,3%).

Em que pese o fato citado de que as mulheres negras tiveram maior redução de taxas de homicídio, esse dado é matizado pelos números absolutos: como dito anteriormente, é maior a quantidade de mulheres negras sendo mortas, anualmente, do que mulheres não negras.

Como apontado, em termos agregados no Brasil, em 2022, o risco de uma mulher negra ser assassinada era 1,7 vezes maior do que a de uma mulher não negra. No entanto, em algumas UFs esses dados são ainda mais críticos. Em todos os estados da Região Nordeste, a chance de uma mulher negra ser vítima de homicídio é pelo menos duas vezes maior do que a de uma mulher não negra. Em Alagoas, por exemplo, mulheres negras têm risco 7,1 vezes maiores de serem mortas violentamente em comparação com mulheres não negras. Diversos outros estados da região figuram entre aqueles com as maiores chances de uma mulher negra ser vítima de homicídio em relação a uma mulher não negra, como o Ceará (onde essa chance é 72,2% maior), Rio Grande do Norte (64%), Sergipe (62,9%) e Maranhão (61,5%).

O racismo estrutural e institucional, a interseccionalidade entre gênero e raça, bem como a insuficiência de políticas específicas de proteção a esse público, são chaves interpretativas que precisam ser consideradas para compreender esses altos índices, uma vez que mulheres negras são tradicionalmente mais expostas a fatores geradores de violência, em comparação com mulheres não negras.

Referências bibliográficas
FBSP – FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: FBSP, 2023. Disponível em: https://publicacoes.forumseguranca.org.br/items/6b3e3a1b-3bd2-40f7-b280-7419c8eb3b39.
[1] O local de ocorrência do homicídio é identificado pelo terceiro dígito da CID-10 de causa básica do óbito.
*O texto original foi publicado no Atlas da Violência 2024 e pode ser lido na íntegra neste link: <https://publicacoes.forumseguranca.org.br/items/81f69453-baf0-4e6a-9f61-f4f6950b1317>.

Newsletter

Cadastre e receba as novas edições por email

Captcha obrigatório
Seu e-mail foi cadastrado com sucesso!

EDIÇÕES ANTERIORES