Múltiplas Vozes 12/06/2024

Argos seletivo: contradições na implementação de tecnologias de monitoramento em São Paulo

Se o Muralha Paulista transforma o estado de São Paulo no gigante personagem mitológico com cem olhos e que tudo vê, no que tange aos seus próprios policiais, o vigilante se permite convenientes cochilos

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Ariadne Natal

Doutora em sociologia, pesquisadora de pós-doutorado do Peace Research Institute Frankfurt (PRIF), Pesquisadora associada do Núcleo de Estudos da Violência da USP

A introdução de novas tecnologias na segurança pública é uma tendência que exige análise crítica minuciosa. É essencial garantir que quaisquer inovações sejam aplicadas com objetivos claros, estudos que comprovem sua eficiência e respeito aos direitos civis. Em São Paulo, duas políticas de segurança se destacam pela adoção simultânea de tecnologias avançadas, mas revelam contrastes significativos em sua aplicação: o programa Muralha Paulista e o Programa de Câmeras Corporais de Policiais Militares.

O Programa de Câmeras Corporais, criado para aumentar a transparência nas ações policiais, tem enfrentado mudanças preocupantes que ameaçam sua eficácia. Inicialmente, as câmeras fixadas nos uniformes dos policiais gravavam continuamente durante turnos de 12 horas, promovendo documentação integral das atividades policiais. No entanto, mudanças no mais recente edital de contratação de novos equipamentos permitiram que os policiais decidam quando ativar ou desativar as gravações, introduzindo um viés potencial que pode comprometer a transparência das operações. Além disso, a redução no período de armazenamento das imagens de 90 para 30 dias diminui significativamente a utilidade dessas gravações em investigações mais extensas, colocando em risco a accountability e a fiscalização efetiva.

As justificativas do governo para as mudanças no programa de câmeras corporais incluem o alto custo de armazenamento das imagens e problemas com a autonomia da bateria dos equipamentos. No entanto, essas justificativas parecem inconsistentes quando comparadas ao investimento maciço no recém-implementado programa Muralha Paulista, cuja base principal também são imagens extraídas de câmeras de vigilância, para o qual as mesmas restrições não têm sido aplicadas.

O Muralha Paulista é um ambicioso sistema de vigilância desenvolvido com o objetivo de controlar a circulação de cidadãos e veículos em todo o estado por meio de uma extensa rede de monitoramento interconectado. Incorporando tecnologias avançadas, como reconhecimento facial e análise de dados em tempo real, o programa mobiliza um grande número de câmeras de vigilância provenientes de diversas fontes, incluindo entidades públicas e privadas, com o intuito de identificar atividades suspeitas e ilegalidades. Para sua efetivação, ao longo do último ano foram firmados acordos com mais de 640 municípios do estado, que cederão as imagens de suas câmeras ao sistema estadual de vigilância e receberão câmeras financiadas pelo governo estadual. Além disso, câmeras em locais de grande circulação, como hospitais, estações de transporte público, estabelecimentos comerciais, condomínios residenciais, estádios de futebol e até mesmo velórios públicos, estão sendo integradas ao programa.

Trata-se de uma extensa rede de monitoramento, cuja abrangência levanta questões pertinentes sobre o acesso e sigilo do material coletado, bem como sobre os custos envolvidos. O programa envolve a coleta e cruzamento de grandes volumes de dados pessoais e integração com bancos de dados de diversas instituições, mas não deixa claro quais são as práticas de compartilhamento e acesso às informações, o que pode levar a abusos e violações de privacidade. Além disso, a ausência de estudos e discussões públicas relacionados aos custos, viabilidade, eficácia e impacto social antes da implementação do programa em larga escala são falhas graves.

As diferenças na forma como o governo do estado tem tratado a implementação dos programas de Câmeras Corporais e do sistema de Muralha Paulista indicam uma preocupante tendência da política de segurança em valorizar a vigilância indiscriminada da população em detrimento da transparência, inclusive nas operações policiais.

Ao mesmo tempo em que alega restrições financeiras e técnicas para expandir com qualidade e integralidade o programa de câmeras corporais, o governo de São Paulo busca ativamente incorporar um grande volume de câmeras de vigilância ao Muralha Paulista, sem restrições técnicas ou financeiras. Essa contradição aponta para uma possível desproporcionalidade e levanta questões sobre as verdadeiras prioridades na alocação de recursos públicos.

Se, por meio do Muralha Paulista, o estado de São Paulo está se tornando um Argos, o gigante com cem olhos que tudo vê por meio de um sistema onipresente de vigilância que monitora cada movimento dos cidadãos, no que tange aos seus próprios policiais, o vigilante se permite constantes e convenientes cochilos, de olhos bem fechados.

A tecnologia deve ser um instrumento e não o fim em si de uma política de segurança pública. A eficácia de qualquer política de segurança não deve ser medida apenas pelos equipamentos ou funções que incorpora, mas sobretudo pelos seus objetivos, a forma de implementação e os resultados produzidos. É essencial que haja uma reflexão crítica sobre as prioridades e os resultados esperados na adoção de novas tecnologias, garantindo que a transparência e a responsabilidade estejam sempre presentes. Além disso, é imperativo promover um diálogo contínuo com a sociedade para construir políticas transparentes que respeitem os direitos civis e atendam às necessidades de segurança de maneira equilibrada e eficaz.

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