A cor da questão 12/06/2024

O “racismo reverso” que habita o vale dos unicórnios

O repertório jurisprudencial insiste e se esmera em escamotear as evidentes assimetrias que trazem as pessoas negras para o topo das desvantagens sociais e econômicas e as impede, sistematicamente, de ter acesso a direitos fundamentais

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Juliana Brandão

Doutora em Direitos Humanos pela USP e pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Não há no Brasil uma pessoa negra que não seja atravessada pelo racismo. Sintoma de uma estrutura e de arranjos institucionais sofisticados e eficazes no intento de encobrir privilégios, o racismo à brasileira se pensa em uma sociedade branca. A sagacidade de Lélia Gonzalez para interpretar o Brasil bem captou esse modus operandi e abriu caminhos conceituando o “racismo por denegação” – ancorado no mito da democracia racial, volta-se contra os negros, justamente aqueles que são o testemunho vivo da negação sistemática de direitos, ao mesmo tempo em que insiste em dizer que não faz nada disso.

A par da evidência dessa engrenagem do racismo, que já traz consigo uma hierarquização racial, reguladora do acesso aos bens da vida, uma distorção conceitual vez ou outra retorna ao debate. Trata-se do famigerado  “racismo reverso”, que alcança ares até de tese jurídica, encontrando guarida em interpretação equivocada da legislação antirracista. Essa formulação encoraja a suposta existência de uma discriminação às avessas, em que os negros ocupariam o lugar de opressores dos brancos. E vai além, porque ainda abriga a ideia de que a cor não importa para a caracterização do racismo. O argumento pode seduzir os mais incautos, mas não se sustenta. O racismo é estrutural e pressupõe um sistema de opressão e relações de poder. É histórica a violência e a opressão a que a população negra foi submetida e notórios são seus nefastos frutos até hoje.

Assim, “racismo reverso” não existe. É um vazio  jurídico. Como tal, em um Judiciário que reconhece seu papel de enfrentamento ao racismo estrutural e institucional, precisa ser situado no campo das formulações que nos lembram o quanto ainda temos que caminhar para superar a desigualdade racial.

No entanto, é de maio de 2024 decisão do Tribunal de Justiça de Alagoas em processo judicial, que manteve acusação a homem negro de injúria racial contra homem branco. Menos do que adentrar os meandros processuais do caso, importa salientar que a existência de um julgado nesses termos evidencia que o “racismo reverso” ainda encontra guarida entre profissionais da segurança pública e entre operadores do sistema de justiça, sem encontrar grandes resistências, ainda que se trate de um notório desajuste entre a realidade e o racismo que a norma vigente se propõe a combater.

O ponto é que de mal-entendidos vão se construindo falsas verdades. Tal qual um telefone sem fio, que, se na brincadeira de criança convoca para o riso, aqui, no entanto, reverberam a negação da discriminação racial. De sentenças exaradas por mãos brancas, desvinculadas do compromisso com um Judiciário antirracista, vamos robustecendo o repertório jurisprudencial que insiste e se esmera em escamotear as evidentes assimetrias que trazem as pessoas negras para o topo das desvantagens sociais e econômicas e as impede, sistematicamente, de ter acesso a direitos fundamentais.

Admitir a existência do “racismo reverso” é  advogar por uma racialização da conveniência, a fim de esvaziar a existência da discriminação racial, enquanto dispositivo de promoção da desigualdade. O branco que não se vê racializado é recolocado na dinâmica racial como se vivêssemos em uma harmonia racial, que apenas vez ou outra é desafiada por um desentendimento entre particulares. A meritocracia ocupa o espaço de única explicação para o sucesso ou fracasso dos indivíduos. E isso nos mostra a atualidade e a pertinência de Lélia Gonzalez, que expôs o racismo que não se admite enquanto violência, que disfarça a desigual distribuição e fruição de direitos e que acentua o fosso que eficazmente resgata a suposta cordialidade brasileira no trato das relações raciais.

É também de Alagoas, na Serra da Barriga, um dos grandes marcos da história de resistência do povo negro – o Quilombo de Palmares. Memória coletiva de que os negros podem se entender como pessoas, reafirma a urgência de resistir à desigualdade e, de como pontuou Beatriz Nascimento, “de ser no mundo adverso.”

Oxalá  possamos caminhar adiante e não mais na sombra dos unicórnios.

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