Múltiplas Vozes 29/05/2024

Militares e elegibilidade em democracias

A elegibilidade de militares, sobretudo da ativa, está associada historicamente a regimes autoritários e a violações das liberdades democráticas

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Pedro Kelson

Mestre em Administração e Gestão Integrada das Organizações pela PUC-SP, sob o tema Democracia e Capital Social. Cofundador do Pacto pela Democracia. Coordenador da agenda de Democracia do Washington Brazil Office. Consultor na Conectas Direitos Humanos e no Instituto Brasil-Israel (IBI)

Rodrigo Lentz

Doutor em ciência política pela Universidade de Brasília (UnB), mestre em ciência política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e graduação na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Foi consultor da Organização das Nações Unidas (PNUD) e coordenador da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Atualmente é pesquisador sênior no Instituto Tricontinental, Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania. Membro da executiva da Coalizão Brasil Memória

A crise das democracias liberais na última década tem acompanhado um elemento histórico muito presente no desenvolvimento das sociedades modernas: o engajamento de militares na política e sua associação ao autoritarismo.

Tal adesão de profissionais das armas na disputa pela direção de governos, por cadeiras em parlamentos e em torno do conteúdo de políticas públicas é acompanhada de importante preocupação sobre sua compatibilidade com o regime democrático. Afinal, qual seria o limite entre direitos políticos de militares e a democracia?

Visando contribuir com a reflexão pública, inclusive com o debate parlamentar sobre a reforma da legislação pertinente, produzimos um breve estudo de como regimes democráticos, tais como o dos EUA, de nações da Europa e de países do Cone Sul tratam atualmente a possibilidade de militares da ativa se engajarem na atividade partidária e se candidatarem a cargos eletivos, dando ênfase para a trajetória histórica dessa participação nas constituições brasileiras.

O estudo [1] verificou que EUA, França, Alemanha, Bélgica, Espanha, Portugal e Reino Unido contam com a vedação de candidaturas de militares da ativa. A Itália, onde também há vedação, é o único país da Europa pesquisado que admite algumas exceções para militares da ativa se candidatarem. No Cone Sul, Argentina, Uruguai e Chile igualmente proíbem militares da ativa de se candidatarem a cargos eletivos, sem exceções. Em todos esses países, é admitida a candidatura de militares da reserva condicionada a diferentes restrições que visam coibir o uso da profissão para fins eleitorais, assim como preservar a instituição de associações partidárias.

Esse quadro aponta para uma certa aprendizagem institucional em relação ao tema, segundo a experiência histórica desses países. Na Europa, tanto o fascismo quanto o nazismo contaram com lideranças militares que emergiram do processo eleitoral para assumir a direção política do Estado e de governos, culminando na Segunda Guerra Mundial. No Cone Sul, as ditaduras de segurança nacional, já no contexto da Guerra Fria, foram também lideradas por militares que, apesar de terem ascendido por golpes de Estado, foram precedidas por ampla participação de militares da ativa no processo eleitoral. Portanto, observa-se uma experiência histórica desses países que reforça a associação entre participação política de militares e autoritarismo.

No caso brasileiro, o estudo das Constituições revela que a elegibilidade dos militares passou por avanços e recuos que refletiam os efeitos dessa participação no regime político. Enquanto na Constituição imperial era admitida a elegibilidade apenas de oficiais, a passagem para a República deu início a um período de ampliação dessa participação política, o que contribuiu para o fechamento do regime político e o retorno de amplas restrições.

Em seguida, uma abertura política novamente retira restrições, amplia a participação e resulta em novo fechamento do regime que, porém, não promove amplas restrições da participação política de militares na política, produzindo apenas um maior controle da organização militar sobre a elegibilidade de militares da ativa. E, com a Constituição de 1988, foi mantida praticamente a mesma regra constitucional do regime autoritário de 1964.

A partir desse estudo, é possível concluir que, ao longo de quase toda a história brasileira, os militares – às vezes todos, às vezes apenas os dos postos hierárquicos inferiores – tiveram sua capacidade eleitoral restringida. No entanto, após 1964, a elegibilidade de militares da ativa foi estabilizada pelo regime autoritário e mantida pelo atual regime democrático.

Esse quadro, como demonstra o aprendizado institucional dos países da Europas e do Cone Sul, contribui para a desestabilização do regime democrático, pois a elegibilidade de militares, sobretudo da ativa, historicamente está associada a regimes autoritários e a violações das liberdades democráticas. Daí ser pertinente, visando evitar essa tendência, promover reformas normativas que se alinhem ao aprendizado institucional da maioria das democracias pelo mundo.

Referências
[1] As fontes utilizadas foram: Pesquisa comparada (Europa) feita pelo Senado francês, Estudo comparado da Red de Seguridad y Defensa de América Latina – RESDAL, Departamento de Defesa do Estados Unidos – US Departament of Defense.

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