Múltiplas Vozes 29/05/2024

Escolas cívico-militares: um projeto nacional, mas não de educação

Parte dos objetivos do modelo é a propaganda de disciplina, dos valores e do modelo de sociedade com gestão militarizada

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Gilvan Gomes da Silva

1º Sargento da Polícia Militar do Distrito Federal, doutor em Sociologia, professor do Instituto Superior de Ciências Policiais (PMDF) e pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança (UnB)

No dia 21 de maio de 2024 foi aprovado o Projeto de Lei Complementar 9/2024, que cria o Programa Escola Cívico-Militar no estado de São Paulo. Na ocasião da votação, estudantes acusaram policiais militares de agressão por se manifestarem contra a implementação do projeto. Além do ato conflitivo e controverso representado na ação entre futuros atores diretos da comunidade escolar (estudantes e policiais militares), a implementação de escolas gerenciadas por militares não é recente no Brasil. Aliás, tanto a implementação quanto o conflito entre as partes nas escolas implementadas são costumeiramente noticiados.

Entretanto, a nova fase, iniciada em 2019, a partir de uma política educacional adotada pelo Governo Federal, inova no protagonismo da participação de policiais militares como atores de um projeto nacional e faz parte de um conjunto de ações, ora “mecânicas” ora “orgânicas”, que têm como objetivo a manutenção ou expansão de grupos políticos nos poderes executivos e legislativos locais e nacionais.

Entre o conjunto de ações, os militares estaduais (policiais e bombeiros), por exemplo, protagonizam grupos próprios em instituições religiosas alinhadas a participações políticas partidárias. Em nível nacional, a participação de policiais militares em templos religiosos da denominação religiosa Igreja Universal demonstra uma articulação entre instituições e atores alinhada nas perspectivas micro e macro, de forma “natural”, mas também “mecânica”. Semelhante ao envolvimento como ator central na política educacional em algumas unidades federativas, sendo uma participação policial militar na religião e na educação com repercussão política, social e cultural.

Na questão educacional, segundo o Governo de São Paulo, ao sancionar a lei no dia 27 de maio de 2024, o modelo mescla a atuação de militares que serão responsáveis pela disciplina e pelo estímulo ao cultivo do respeito à pátria, aos símbolos nacionais e ao civismo. Dessa forma, a partir dessas diretrizes seria possível diminuir a evasão escolar e a repetência. Apesar de haver experiências semelhantes e incipientes avaliações quanto à eficácia do modelo para os objetivos pretendidos, ao propor a política educacional a fundamentação ainda precisa ser consolidada. A primeira consequência é que as ditas consultas à comunidade escolar para obtenção de legitimidade para implementação reduzem as opções entre manter o cenário da educação com problemas ou tentar algo diferente que talvez possa proporcionar resultados. Não há opção de outros modelos educacionais ou de atividades.

Como dito anteriormente, há outros modelos de escolas de ensino fundamental e médio gerenciados por militares. Todavia, as motivações da implementação e a execução são distintas. O primeiro modelo de ensino são os Colégios Militares gerenciados por unidades subordinadas ao Departamento de Educação e Cultura do Exército Brasileiro. A primeira unidade data de 1889 Hoje há 15 unidades de ensino desse tipo no Brasil, situadas geralmente nas capitais, com corpo discente predominantemente formado por dependentes de militares das Forças Armadas.

O segundo modelo de ensino são os Colégios Militares Estaduais gerenciados pelas Polícias Militares e pelos Corpos de Bombeiros Militares. Semelhantes aos Colégios Militares do Exército Brasileiro, são gerenciados por militares e inicialmente instituídos para atender os dependentes dos militares das respectivas instituições. Apresentam outra semelhança com as escolas militares federais – as vagas remanescentes são destinadas à sociedade a partir de processo seletivo.

Em ambos os casos, as variáveis que impactam o processo de ensino e aprendizagem são totalmente diferentes do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM) do Governo Federal, com a maior participação de militares (2019-2022)[1]. A militarização da administração pública federal potencializou empregar o militarismo (capitais cultural, social e simbólico) como solução para questões sociais, inclusive educacionais.

Com a mudança no Governo Federal após as eleições de 2022 e a interrupção do PECIM em 2023, os governos estaduais alinhados “ideologicamente” à pauta pretendem continuar o processo de militarização iniciado em 2019. O ex-capitão do Exército Brasileiro e governador de São Paulo (Republicanos) promulgou um programa que já está sendo realizado por outros governos estaduais de partidos políticos que apoiaram o Governo Federal “militarizado” do período de 2019 a 2022; o Governo do Paraná (PSD) implementou 196 escolas estaduais do modelo cívico-militar estadual. O Rio Grande do Sul (PSDB), 18 unidades. No Distrito Federal (MDB) há 12. Em Minas Gerais (Novo) foram implementadas nove.

Segundo o coronel da reserva do Exército Brasileiro Marcelo Pimentel, a militarização das escolas pelo PECIM e pelos programas estaduais é uma ação que visa à ampliação da base eleitoral e militante a partir da socialização dos valores militares. Também são ações de um planejamento de longo prazo; todavia, o contexto faz com que os militares estaduais protagonizem o processo. O Projeto de Nação: o Brasil em 2035 é um documento apresentado por institutos militares (Instituto General Vilas Boas, Instituto Federalista e SAGRES) dividido em eixos que sintetizam as metas e diretrizes para o Brasil a longo prazo. Entre as diretrizes, consta a de “fortalecer o espírito cívico, patriótico e os valores morais e éticos da sociedade, com vistas a recuperar a coesão nacional”. No documento há a menção de disseminar o modelo das escolas cívicos-militares “no tocante às normas de disciplina, respeito, civismo” entre outras.

Portanto, as escolas cívico-militares são socializantes dos valores e da “estética militar” como solução para questões sociais. Para as instituições protagonistas, neste cenário, há a perda da representação policial/segurança pública e a projeção simbólica de instituições militares. Por ser um projeto partidário de longo prazo de manutenção e expansão do poder, é um modelo que não precisa ser implementado em todas as escolas, pois o objetivo é a propaganda de disciplina, dos valores e do modelo de sociedade com gestão militarizada, inibindo outras possibilidades de soluções cientificamente fundamentadas e “sufoca” os problemas decorrentes do modelo escolar cívico-militar, inclusive os possíveis conflitos entre os atores da comunidade escolar e, de certa forma, vincula as instituições militares a grupos políticos partidários.

[1] O governo federal do período 2019-2022 teve a maior participação de militares em diversas níveis: o presidente da República era capitão da reserva do Exército Brasileiro e o vice-presidente, general. O primeiro escalão era composto por 42% de ministros militares, e apresentou a maior participação de militares em cargos civis, com mais de 6 mil representantes em diversas agências. O estudo A Militarização da Administração Pública no Brasil: Projeto de Nação ou Projeto de Poder?,  do cientista político William Nozaki, analisou algumas consequências da presença de militares das Forças Armadas como, por exemplo, ganhos corporativos.

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