A cor da questão 10/04/2024

Claudia Silva Ferreira: a justiça que tarda e falha

Uma sociedade que se pretende igualitária precisa institucionalmente repudiar a exclusão e a desigualdade racial. E o Judiciário tem inegavelmente parte nisso

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Juliana Brandão

Doutora em Direitos Humanos pela USP e pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Em 2014, Claudia, mulher, preta, mãe, trabalhadora, estampou as manchetes da imprensa nacional e internacional não exatamente por sua trajetória de vida, mas pela crueza e perversidade das circunstâncias que envolveram a sua morte.

Uma década depois, cá estamos frente a um Judiciário que, ao se pronunciar, sem dúvida, a destempo nesse caso concreto (i), não se deixa influenciar pela opinião pública e cumpre os desígnios legais, previstos na legislação vigente ou (ii) que se fecha em suas idiossincrasias e, ancorado em um conceito jurídico, potencializa ainda mais o aviltamento do direito às vidas negras?

Para responder, um ponto de partida razoável parece ser refletir sobre quanta coisa cabe em dez anos.

Façamos uma rápida projeção, no recorte do universo das carreiras jurídicas. Para assumir uma posição inicial na magistratura, pela via do concurso público, o candidato, bacharel em direito, supondo-se uma trajetória próspera e sem percalços, que aqui, para fins argumentativos, podemos resumir em uma vida integralmente voltada aos estudos, consegue, em cinco anos de graduação, somados a três anos de prática jurídica, tornar-se juiz de direito.

Ou seja, em oito anos, o outrora jovem estudante, agora com o poder da caneta, decide vidas, rumos e define projetos de futuro. No mesmo prazo em que se forma um juiz, no entanto, não se teve, no caso Claudia, uma sentença.

Em pesquisa do CNJ (2018) que traça o perfil sociodemográfico dos magistrados brasileiros, os homens representam 56% dos juízes substitutos. E em levantamento também do CNJ, de 2021, sobre negros e negras no Poder Judiciário, os dados atestam que pessoas negras são apenas 12,8% da magistratura brasileira. Com isso, quero chamar atenção para o fato de que a imparcialidade – que deve sim ser a marca de um Judiciário fortalecido, em um Estado Democrático de Direito – é forjada não só pela principiologia constitucional, mas também atravessada pelas vivências, valores e percursos daqueles que materializam a jurisdição.

Do mesmo modo, uma leitura antirracista dos direitos fundamentais não se constrói em abstrato – exige desaprender o racismo entranhado nas estruturas e bem acomodado nas manifestações institucionais. Com esse perfil do Judiciário brasileiro, o desafio se impõe.

É Grada Kilomba que nos diz que as vítimas reais do racismo são rapidamente esquecidas.

Quando, a par das evidências, o processo judicial do homicídio de Claudia é sentenciado apenas uma década após a ocorrência de sua morte, já vemos a desimportância de uma vida negra na estrutura do Poder Judiciário.

Quando, a par das evidências, no mérito, essa mesma sentença fundamenta-se no “erro de tipo” para alicerçar a absolvição dos réus, policiais militares, que são agentes públicos a serviço do Estado Brasileiro, a barbárie assume roupagem jurídica e vira sinônimo de um mero “mal-entendido”.

Claudia foi baleada no pescoço e nas costas. Colocada no porta-malas de uma viatura, ficou pendurada no parachoque do veículo por um pedaço de roupa. E assim foi arrastada, pelo asfalto. A absolvição nesse caso esvazia de valor o direito à vida e se perpetua para além, revitimizando um corpo que sequer foi respeitado, enquanto memória da vida que o habitou.

A certeza da aplicação da decisão judicial representa a manutenção da confiança na instituição do Poder Judiciário.  Inclusive se diz, na prática jurídica, que decisão judicial não se discute, se cumpre. Contudo, a justiça que fecha os olhos para o racismo que lhe atravessa é condescendente com a violação sistemática de direitos da população negra. Uma sociedade que se pretende igualitária precisa institucionalmente repudiar a exclusão e a desigualdade racial. E o Judiciário tem inegavelmente parte nisso.

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