As drogas e o duplo fetiche da mercadoria
A exploração do trabalho comum gera empobrecimento. Este torna o trabalho ilegal interessante pela maior possibilidade de lucro em relação ao trabalho formal. E a exploração do trabalho no tráfico eleva mais ainda o lucro do empreendedor
Roberto Magno Reis Netto
Doutor em Geografia (com ênfase em segurança pública). Mestre em Segurança Púbica. Oficial de Justiça Avaliador do TJPA. Professor (IESP). Pesquisador (LABGEOVCRIM/UEPA e Érgane – pesquisadores da Amazônia). Mentor
Clay Anderson Nunes Chagas
Doutor em Desenvolvimento Socioambiental. Mestre em Desenvolvimento Sustentável. Professor e Reitor (UEPA). Pesquisador (Líder do LABGEOVCRIM/UEPA)
Clarina de Cássia da Silva Cavalcante
Especialista em Atividade de Inteligência. Técnica da Secretaria de Administração Penitenciária do Pará. Consultora
Imagine-se um florista.
Você compra dez vasos pelo total de R$80,00. Planta espécies a um valor de R$100,00. Após ornamentos que lhe tomaram uma manhã, você produz dez vasos para venda ao valor de R$ 30,00. Seu trabalho na montagem corresponderia a R$ 50,00, hipoteticamente.
Pressupondo que seu produto seja vendido integralmente, você compensará seu custo e trabalho. E obterá um lucro de R$ 70,00. Em épocas boas, os vasos se valorizam pela demanda. Em épocas ruins, você é obrigado a fazer promoções para, ao menos, compensar os custos. Persistir é uma opção. Parar, também. É o risco do negócio.
Imaginando que haja um bom retorno e que você consiga uma venda de 50 vasos por dia (excluídos os sábados e domingos), conseguirá um total de 1000 vasos em 20 dias. Sua receita seria de R$ 30.000,00 ao mês, o que permitiria baixar os custos da aquisição, e, quem sabe, contratar trabalhadores.
A grande diferença é que, a partir daí, o custo de R$ 50,00 pelo trabalho de uma manhã – que resultaria em R$ 100,00/dia, considerando também um período vespertino, e, em 20 dias, R$ 2.000,00 – seria substituído por um salário-mínimo de R$ 1.320,00 (em 2023), considerando a contratação formal de um trabalhador, acrescido dos custos de transporte (em Belém-PA, por exemplo, por duas passagens de R$ 4,00 – ida e volta – em 20 dias, no total de R$160,00) e previdenciários/fiscais (de R$ 371,82). Atinge-se o total de R$ 1851,82.
Afora o lucro dos vasos e os descontos decorrentes da maior aquisição de insumos, você ainda obteria R$ 148,18 sobre a diferença entre o valor de fato pago ao trabalhador e o valor real do trabalho.
Agora imagine que este trabalhador é informal. O custo previdenciário/fiscal sai da conta, e, se ele morar às proximidades, o de transporte também. Isso, se você de fato pagar um salário-mínimo legal. Obviamente, neste caso, há o risco do negócio de sofrer uma reclamação trabalhista, não é?
Indo além, ouse eliminar, hipoteticamente, todo sistema de proteção ao trabalhador (Justiça do Trabalho, leis, sindicatos etc.). Isso lhe permitiria estipular o quanto este trabalhador ganharia por vaso. Se, com um salário de R$ 1320,00 ele produz 20 vasos por dia, em tese, este renderia R$ 3,30/vaso. Oferecendo-lhe 3 reais/vaso, bastaria estimulá-lo a ampliar sua produção à exaustão para superar o salário-mínimo. Ainda assim, o custo de trabalho de uma manhã seria de somente R$ 30,00, em face dos R$50,00 hipotéticos.
O caso denota o conceito de exploração da taxa de mão-de-obra de Marx (2020) em O Capital: Quanto mais precárias foram as condições de trabalho, em tese, mais fácil se torna convencer um trabalhador a vender sua mão-de-obra por valores inferiores, o que é obscurecido e afastado do valor do produto à venda pela mediação de complexas relações intermediadas pelo dinheiro.
A essa dissimulação Marx (2020) deu o nome de fetiche da mercadoria.
Agora imagine-se um capitalista de um diferente ramo: o comércio de maconha. Ante a absoluta ilegalidade das relações comerciais, você agora lucra R$50,00 por 20g do seu produto, hipoteticamente. Você consegue otimizar a exploração da mão-de-obra de seu trabalhador agricultor por produto, ainda assim, fazendo-o ganhar muito mais que um trabalhador formal. E, ao fim, você obtém lucros substancialmente mais altos.
Agora há custos de corrupção e invisibilidade de seu negócio. Mas, como dito, são os riscos do negócio.
A violência, por sua vez, se torna a principal mediadora de relações. Assim, para além da ausência do sistema formal de proteção, o empreendedor do tráfico consegue impor sua vontade sobre o trabalhador pela força. Se este procurar a polícia, será preso, senão morto, antes de tentar.
Essa hipótese explicaria a eficiência de organizações criminosas em estabelecer oligopsônios sobre os agricultores, elevando a taxa de exploração da mão de obra (Marx, 2020) e reduzindo os custos dos insumos junto às comunidades agrícolas pobres (McDermott, 2018). Basta adicionar o elemento violência à equação.
Igualmente, os custos de transporte são reduzidos sob fórmulas semelhantes.
Na outra ponta, organizações criminosas como as facções têm demonstrado sucesso no domínio de territórios e tabelamento de preços nos mercados finais. Também desempenham o monopólio das bocas como garantia de condições ideais de lucro da atividade. O lucro, agora, advém da atividade de dobragem (redução da pureza para aumento da quantidade) e da exploração do trabalho desempenhado por varejistas que veem no tráfico uma (arriscada) oportunidade.
Para além da taxa de exploração comum, um novo fetiche atinge a mercadoria, obscurecendo mais ainda a relação de trabalho: a exploração violenta e ilegal, que subverte a taxa de lucro ainda mais e eleva ao infinito o lucro do empreendedor.
A exploração do trabalho comum gera empobrecimento. Este torna o trabalho ilegal interessante pela maior possibilidade de lucro em relação ao trabalho formal. E a exploração do trabalho no tráfico eleva mais ainda o lucro do empreendedor.
Todos vivem felizes.
O que explicaria a quantidade de acionistas do nada que arriscam o que nada têm no mundo do tráfico (D’élia Filho, 2014). Explicaria, também, porque as organizações criminosas parecem ter preferência por espaços pauperizados, e, mais atualmente, comunidades tradicionais (quilombolas, indígenas e ribeirinhos). É ali que encontrariam sua mão-de-obra ideal: a população mais vulnerável (Reis Netto, 2023).
Mas, como dito, é tudo hipotético.
O Brasil ainda é o país do futuro.
Afinal, você jamais seria capaz de cometer qualquer ilegalidade, não é? Seria?