Andréa Lucas Fagundes
Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas/UFRGS. Mestre em Sociologia pela UFRGS
Desde 2019 temos acompanhado e registrado neste Fonte Segura movimentos envolvendo o Departamento de Polícia Federal, sua atuação e disputas no campo político. Em específico, em maio de 2021 publicamos texto intitulado “A Polícia Federal resiste?” (ed. 90), pois disputas no campo político ocorridas desde o ano de 2019 colocavam a Polícia Federal no centro de impasses que mobilizavam articulações envolvendo atores políticos e atuação em instituições do sistema de controle, dentre as quais, além da PF, a Agência Brasileira de Inteligência – Abin.
Em 2020, após a exoneração do então diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, culminando na saída do então ministro da Justiça e Segurança Pública do governo de Jair Bolsonaro, Sergio Moro, a indicação de Jair Bolsonaro para novo diretor-geral da PF – Alexandre Ramagem – não chegou a assumir o cargo. O indicado teve sua posse suspensa pelo STF por “desvio de finalidade”, atendendo a pedido de ação movida pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), que alegou ilegalidade na nomeação. Ramagem seria uma pessoa próxima e de confiança de Jair Bolsonaro e de seus filhos, tendo atuado em cargos como coordenador de segurança do então candidato Jair Bolsonaro (2018), assessor especial da Secretaria de Governo da Presidência da República, na função de auxiliar direto do então ministro de Estado Carlos Alberto Santos Cruz (2019) e, desde 2019 à frente da Direção-Geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), cargo no qual permaneceu até o final do governo Bolsonaro.
No decorrer do governo Bolsonaro, vários foram os episódios em que a PF foi alvo de tentativas de aparelhamento político (dentre os quais: esquema das rachadinhas, trocas na direção geral, afastamentos de superintendentes regionais, afastamentos de delegados da condução de investigações e até a tentativa de implementação de “mecanismos de supervisão administrativa e estruturação organizacional”), além de a instituição ter tido em sua cúpula policiais que tiveram a trajetória de carreira caracterizada por “atuação política” em diversos cargos de confiança, tanto no Poder Executivo quanto no Judiciário[1].
Contudo, tais episódios parecem não ter impedido que, no nível operacional, o quadro da PF (ou ao menos uma parcela) tenha mantido “resistência institucional” à crescente interferência política, já que os argumentos que vêm sendo apresentados nos últimos anos sobre o desenvolvimento institucional da PF, configurando o que acadêmicos e os próprios policiais federais consideram a independência administrativa e investigativa da PF, tenham sido frequentemente “testados” no governo Bolsonaro.
Desde a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre as Fake News (2019), especulações sobre o envolvimento de servidores da Abin em estrutura de monitoramento extraoficial conhecida como “ABIN Paralela” estavam em pauta. Especulações à parte, em outubro de 2023 a Polícia Federal deflagrou a Operação Última Milha, com o objetivo de investigar o uso indevido, por servidores da Abin, do sistema de geolocalização de dispositivos móveis sem autorização judicial. De acordo com a PF, as investigações indicavam que o sistema de geolocalização utilizado pela Abin é um software intrusivo na infraestrutura crítica de telefonia brasileira. A rede de telefonia teria sido invadida reiteradas vezes, com a utilização do serviço adquirido com recursos públicos.
No final de janeiro corrente, em continuidade às investigações da operação Última Milha, a PF deflagrou a operação Vigilância Aproximada, com o objetivo de investigar organização criminosa que se instalou na Agência Brasileira de Inteligência (Abin) com o intuito de monitorar ilegalmente autoridades públicas e outras pessoas. Segundo consta no site oficial da instituição, nesta nova etapa a Polícia Federal busca avançar no núcleo político, identificando os principais destinatários e beneficiários das informações produzidas ilegalmente no âmbito da Abin, por meio de ações clandestinas.
Não por acaso, as operações acima citadas estão sendo exploradas neste texto. Em 2021 questionamos se a PF resistiria à insistente interferência do Executivo, que resultava em tensas relações entre quadros da PF e o governo Bolsonaro. Tais operações parecem refletir a resistência de quadros do órgão, que, ao longo dos anos 2000 e até o primeiro ano do governo Bolsonaro, teve em sua cúpula lideranças com fortes características de atuação técnica, defensores da autonomia de investigação e que influenciaram a formação de novas gerações.
Sabe-se que, até uma operação ser deflagrada, há um processo de investigação de atos alegadamente ilegais que tenham sido previamente detectados por órgãos de monitoramento ou expostos por informantes; ou seja, por investigação compreende-se um procedimento de coleta e produção de provas para subsidiar um processo judicial de responsabilização, que pode levar meses até que as operações, que são ações coordenadas para cumprimento de mandados judiciais, aconteçam. Sendo o processo de investigação atividade-fim da PF enquanto polícia judiciária, as operações recentemente deflagradas levam-nos a acreditar em uma manutenção da “autonomia de investigação” da instituição.
Cabe lembrar que episódios de interferência política na PF, seja com menor ou maior intensidade, ocorreram em diferentes governos (Fonte Segura, ed. 11, 2019). Contudo, acreditamos que a mudança endógena e a transformação discursiva ocorridas na instituição nos últimos 30 anos, principalmente em nível operacional, fortalecendo a capacidade e a autonomia de investigação, bem como a formação técnica dos quadros conquistados pela PF, refletindo em sua imagem institucional, tem mantido a missão da PF acima de interesses políticos. A PF resiste. Cabe-nos acompanhar, monitorar e analisar movimentos e estratégias institucionais de manutenção e adaptação ao longo do tempo.