As mudanças no Ministério da Justiça e Segurança Pública e as perspectivas para o setor no governo Lula
O ministro Lewandowski, que se notabilizou no STF e como professor no Largo de São Francisco pelo profundo conhecimento em matéria penal, tem um desafio imenso pela frente. No atual ambiente de crise das democracias liberais e instabilidade sistêmica, essa máxima precisa ser acompanhada pelo enfrentamento das questões que geram o medo e a insegurança pública
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
Sociólogo, professor titular da Escola de Direito da PUCRS, membro do INCT-InEAC e Associado Sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Com a nomeação do ministro Flávio Dino para o STF, ocorreu a primeira movimentação importante no primeiro escalão do governo Lula, em uma área que tem se constituído na mais sensível e central para o enfrentamento das ameaças contemporâneas à democracia.
O Ministério da Justiça e Segurança Pública acumula um sem-número de funções essenciais à articulação política do governo e à execução de políticas públicas em áreas-chave. Para tanto, conta em seu organograma com a Secretaria Nacional de Justiça, a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos, a Secretaria Nacional de Segurança Pública, a Secretaria Nacional do Consumidor, a Secretaria de Acesso à Justiça, a Secretaria Nacional de Políticas Penais, a Secretaria Nacional de Assuntos Legislativos, além da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal.
Desde a campanha presidencial, havia um reconhecimento, por parte do então candidato, de que o grande número de atribuições e a centralidade cada vez maior do tema segurança pública na agenda política nacional demandariam uma divisão da pasta, nos moldes do que havia ocorrido durante o governo Michel Temer, no qual foi criado o Ministério Extraordinário da Segurança Pública. A conjuntura política, no entanto, acabou consolidando a ideia, por parte do atual presidente, de que a criação de um ministério específico para a Segurança Pública poderia dar um peso excessivo para lideranças policiais/militares assumirem o controle da articulação federal na área, além de ampliar a visibilidade e a responsabilidade do governo federal em um setor que tende a enfrentar crises permanentes nos estados.
Assumindo um Ministério com tamanhas responsabilidades, e colocado na linha de frente do enfrentamento à movimentação golpista que culminou no 8 de janeiro de 2023 em Brasília e todos os seus desdobramentos, o ministro Flávio Dino enfrentou com coragem o desafio. O balanço de sua gestão, no entanto, feito, entre outros, por Luís Flávio Sapori (Fonte Segura, ed. 212, dezembro de 2023), aponta para a incapacidade de formulação e implementação de um plano estratégico consistente de controle da criminalidade de médio e longos prazos. Mas reconhece iniciativas importantes, além da atuação consistente na contenção à tentativa de golpe, como a reversão da política de liberação de armas de fogo e a repressão direcionada contra crimes ambientais na Amazônia. Em suma, a retomada do protagonismo que o ministério havia perdido no governo anterior para fins democráticos e institucionais.
No âmbito específico da segurança pública, em primeiro lugar é preciso reconhecer que a questão vai muito além da atuação da SENASP, relacionando-se com temas como as reformas da legislação penal e processual penal, a coordenação do sistema penitenciário e das alternativas penais, a política de drogas e de recuperação de ativos e a gestão das polícias federais. Deste ponto de vista, pensar a segurança pública para além da repressão policial exige uma perspectiva de múltiplas frentes, e que produza uma sinergia efetiva em um ministério com tantas secretarias e atribuições. Para tanto é necessário que o tema seja colocado estrategicamente no centro das preocupações não só do MJSP, mas do governo como um todo.
O crime organizado e os mercados ilegais se constituem hoje na principal ameaça à institucionalidade democrática e à convivência pacífica não só no Brasil, mas em toda a região. Os exemplos do Equador, com bandos criminais sem controle e em enfrentamento direto ao sistema político, do México, com crises permanentes em torno dos grupos ligados ao narcotráfico, da Colômbia, com estruturas criminais que se mantêm ativas ao longo de décadas, permitem-nos dimensionar o problema.
No Brasil, as altíssimas taxas de homicídios têm cada vez maior vinculação às disputas de território e acertos de contas entre facções criminais, disseminadas em todo o território nacional, e articuladas em torno de grupos organizados em estruturas hierárquicas sólidas, negócios diversificados no mundo do crime, disseminação de uma cultura da masculinidade violenta e a um ideário antissistema, e uma atuação cada vez mais voltada para a obtenção de favores estatais, por meio da cooptação e da eliminação violenta de agentes públicos.
As conexões entre a extrema-direita e o mundo do crime são visíveis, pela degradação dos mecanismos institucionais de controle, a disseminação de armas de fogo, a dilapidação de áreas ambientais pelo garimpo e a exploração desenfreada, a ocupação de territórios urbanos por milícias relacionadas com policiais corruptos e líderes políticos locais. De outro lado, é necessário também reconhecer que o que se convencionou chamar de “esquerda” do espectro político não apresenta uma visão clara e atualizada sobre a importância da contenção da criminalidade em suas várias dimensões.
Se de um lado o campo democrático avançou nas últimas décadas na produção de políticas de enfrentamento à violência de gênero, ao racismo e às demais práticas criminais que afetam especificamente grupos sociais que de alguma forma se mobilizaram em torno da necessidade de reconhecimento do problema da vitimização e da responsabilização criminal de seus autores, de outro ainda padece de uma certa visão rousseauniana do problema da segurança. Ou seja, a crença de que o indivíduo é bom por natureza, e a sociedade o corrompe, bastando que se enfrentem os problemas sociais e estruturais para que a criminalidade desapareça.
Soluções como o PRONASCI, que teve uma efetiva importância no segundo governo Lula, no final dos anos 2000, para a implementação de políticas induzidas pelo governo federal e efetivadas pelos estados e municípios, integrando políticas de prevenção com a qualificação da atuação das polícias civis e militares na repressão ao crime, deixaram um legado importante, mas insuficiente para lidar com os desafios atuais na segurança pública. Não por acaso, a questão da segurança tem aparecido em pesquisas como a principal preocupação dos brasileiros nos últimos anos, decorrência das crises intermitentes nos estados, com altas taxas de letalidade policial, grande número de homicídios e feminicídios, crimes ambientais e no ambiente virtual etc.
O perfil do ministro da Justiça e Segurança Pública pode ter implicações significativas nas políticas de segurança pública. O ministro desempenha um papel crucial na formulação e implementação dessas políticas, incluindo a coordenação com as forças policiais e outros órgãos relacionados. O ministro Lewandowski, que se notabilizou no STF e como professor no Largo de São Francisco pelo profundo conhecimento em matéria penal, tem um desafio imenso pela frente. Sua histórica vinculação ao pensamento garantista, e a escolha do procurador Mário Sarrubo para a SENASP apontam para um caminho de aposta na legalidade e no fortalecimento das relações entre o governo federal e as instituições judiciais, incluída aí a polícia judiciária federal e dos estados.
Como se sabe, boa parte dos problemas no campo da segurança pública dizem respeito à precariedade da investigação criminal, por deficiências de toda ordem. Nas últimas décadas, as polícias judiciárias foram perdendo espaço e recursos para as polícias militares, em um processo de crescente militarização da segurança pública que não trouxe resultados efetivos para a redução da criminalidade. E aprofundou problemas como as baixas taxas de esclarecimento de delitos como o homicídio, reforçando a impunidade e o foco do policiamento ostensivo em pequenos vendedores de droga e assaltantes de rua, que resulta no famoso “enxugar gelo” da repressão ao crime. O reforço da investigação criminal, com investimento em perícia e a criação de uma rede racional e acessível que permita a integração e o aprimoramento do sistema de inteligência, articulado com a implementação da figura do juiz de garantias pelo Poder Judiciário, pode implicar uma reforma estrutural de grandes proporções no sistema de persecução penal.
Por outro lado, o papel do governo federal no campo da segurança pública não pode deixar de colocar no centro da agenda a questão carcerária. A superlotação, o domínio do ambiente carcerário pelas facções criminais e a falta de uma política de acompanhamento do egresso constituem questões-chave, que podem ser enfrentadas pela articulação do Ministério da Justiça com os governos estaduais, com a garantia de vagas e a rediscussão da política penal, incluindo aí o tema das alternativas penais, no qual avançamos muito a partir de reformas legais e institucionais e programas implementados pelo antigo DEPEN e pelo CNJ. Mas ainda há muito por fazer.
Especificamente via SENASP, seria possível a criação do Instituto Nacional de Pesquisa em Segurança Pública, que ficaria encarregado da gestão do SINESP, bem como da análise dos dados e realização de estudos nos moldes do que é feito pelo INEP no âmbito do MEC e do DATASUS no Ministério da Saúde, e a retomada de um plano nacional de redução de homicídios com foco nos municípios com maiores taxas de violência letal e abordagem multidisciplinar.
Historicamente se reconhece que um governo sólido é um governo que vai bem na área econômica. No atual ambiente de crise das democracias liberais e instabilidade sistêmica, essa máxima precisa ser acompanhada pelo enfrentamento das questões que geram o medo e a insegurança pública. No caso do Brasil, a insegurança vai bem além de uma sensação subjetiva, marcando a experiência cotidiana de milhões de brasileiros. Colocar a questão no centro das políticas de governo, articular e induzir políticas transversais e em cada um dos níveis federativos e garantir o fortalecimento da institucionalidade democrática para a responsabilização criminal seriam legados imprescindíveis e duradouros deste governo. Sucesso aos novos ocupantes do Ministério da Justiça e Segurança Pública.