Múltiplas Vozes 17/01/2024

Pacto pela Vida no Distrito Federal: uma hipótese explicativa para a redução de homicídios na Capital Federal

Um dos legados desse plano foi a capacidade de imbuir nas forças o valor de dados e indicadores na gestão do policiamento

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Alexandre Pereira da Rocha

Doutor em Ciências Sociais. Policial Civil do Distrito Federal. Associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Segundo dados da Divisão de Estatística e Análise (DATE), da Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF), em 2003, foram registradas na Capital Federal 586 ocorrências de homicídio. Em 2023, esse número baixou para 256 ocorrências. Ora, em duas décadas os casos de homicídio reduziram em 55,0%. Durante esse período, em 2012, o Distrito Federal chegou a registrar 792 ocorrências, o que correspondia a quase três vezes mais do que os números de 2023. Diante da significativa redução de ocorrências, em 2023, é possível que a taxa de homicídio por 100 mil habitantes fique em torno de oito casos. O que explica essa diminuição constante de registros de homicídio?

Gráfico 1: Série histórica de ocorrências de homicídio. Fonte: DATE/PCDF

O Brasil, nas últimas duas décadas, chegou a recordes absolutos de homicídio; inclusive superando os números de zonas em guerra. Não obstante, recentemente, tem verificado redução nos números das mortes. Assim, conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2023), em 2017, o país alcançou o recorde de 64.078 casos de Mortes Violentas Intencionais e, em 2022, houve variação para 47.398 casos; ou seja, diminuição de 26,0%. De todo modo, o Anuário de 2022 já alertava para a fragilidade dessa redução, porquanto a participação do Brasil no total de homicídios ainda era alta, em torno de 20,0% dos casos do mundo. Portanto, mesmo diante das reduções dos números absolutos de homicídios no país, esse crime ainda é um enorme desafio para a segurança pública.

Nota-se que novas dinâmicas de homicídio vêm se constituindo pelo Brasil. Os mercados ilícitos têm se espalhado para as regiões Norte e Nordeste e, com destaque, para profusão de facções criminosas para além dos grandes centros urbanos. Nesse sentido, mais uma vez o Anuário de 2023 evidenciou como certos municípios interioranos da Bahia, Pernambuco, Mato Grosso, Pará e Amapá alcançaram mais de 70 mortes por 100 mil habitantes. Observa-se que a redução de homicídios no país é contraditória, pois, enquanto os valores nacionais diminuem, há explosão de casos em certos munícipios do interior do país.

Frente aos contrassensos do fenômeno homicídio no Brasil, ressalta-se a situação do Distrito Federal. Semelhante ao restante do país, a Capital Federal teve alta expressiva de mortes violentas até 2012, mas, de lá para cá, os números têm caído, inclusive em áreas marcadas por altas taxas de criminalidade; por exemplo, nas regiões de Ceilândia, Planaltina e Samambaia. Destaca-se que, ao se considerar a redução de homicídios no Distrito Federal desde 2003, em média houve queda de 10,0% anualmente. Ademais, a Secretaria de Segurança Pública informou que, em 2023, registrou-se a menor taxa de homicídios em 47 anos na Capital da República[1]. Portanto, a redução de homicídios nessa cidade não parece ser mero acaso ou evento sazonal.

O caso do Distrito Federal desperta atenção, pois está envolto em incertezas e questionamentos. A redução de homicídio tem sido consequência de ações das forças de segurança pública? De planos governamentais? De mudanças demográficas, sociais e econômicas? De mudanças nos mercados ilícitos? Essas questões figuram mais como hipóteses explicativas de um fenômeno complexo. Ora, possivelmente cada uma delas, em conjunto ou separadamente, tenha validade e possam ter contribuído para queda de homicídio na Capital Federal.

Todavia, especificamente, acredito numa hipótese: o plano Pacto pela Vida, implementado em 2015. Por certo há outros fatores, mas é de ressaltar que o Pacto pela Vida trouxe conceitos e ações inovadoras para o enfrentamento da criminalidade na Capital Federal. Esse plano já tinha sido experimentado com êxito em outros estados, por exemplo, em Pernambuco. No Distrito Federal, o Pacto pela Vida teve como idealizador e implementador o sociólogo Arthur Trindade, notório docente da Universidade de Brasília no campo de estudos sobre a violência. Inclusive, ele ocupou o cargo de Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal.

O referido plano se destacava pelo envolvimento de acadêmicos e pesquisadores da temática segurança pública. Particularmente, ressalta-se a capacidade do plano em promover e integrar várias instâncias governamentais, sobretudo as polícias. Ademais, ele tinha seu caráter focalizado em segmentos e regiões vulneráveis da Capital Federal, mas, também, possuía visão universalista da segurança pública à medida que buscava agregar setores variados do governo e da sociedade civil.

Com o Pacto pela Vida, um dos princípios que tomou as polícias foi: analisar a criminalidade a partir de números e de indicadores.  Contudo, não era só contabilizar, mas compreender a dinâmica do fenômeno criminal e propor policiamento orientado. Nesse sentido, na Secretaria de Segurança Pública foi criada uma unidade específica para monitoramento e produção de conhecimento sobre a criminalidade. Da mesma forma, na PCDF foi estruturado um departamento de gestão da informação, o qual passou a avaliar dados agregados de ocorrências e denúncias. Nesses órgãos foram desenvolvidos painéis de monitoramento da criminalidade, os quais forneciam informações em tempo real da criminalidade.  Por sua vez, na Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) o policiamento foi essencialmente orientado por dados oriundos de análises técnicas sobre o fenômeno da criminalidade.

Como plano governamental, o Pacto pela Vida foi descontinuado com mudanças no comando do governo distrital. Assim, parte do pessoal, das ideias e das estruturas do plano, possivelmente, também tenha deixado o governo. Entretanto, há indícios que parte da filosofia do Pacto pela Vida permaneceu na secretaria de segurança pública e nas polícias da Capital Federal. A parte que exalto é que as forças passaram a se preocupar com dados e indicadores. Por exemplo: com a finalidade de mensurar a efetividade de ações da PCDF, há acompanhamento regular dos indicadores incidência de crimes violentos letais intencionais e taxa de resolução de homicídios. Ora, os citados indicadores eram objetivos do Pacto pela Vida e, atualmente, continuam sendo para a PCDF.

Não é fácil se avaliar o impacto de um plano governamental, pois a causalidade da política geralmente não é tão visível. No entanto, a queda consistente nos números de homicídio na Capital Federal a partir de 2014 sugere que ocorreram ações que cooperaram para uma mudança de rota que, a meu ver, está relacionada ao Pacto pela Vida; principalmente pela forma como o plano impactou nas mentalidades e ações dos gestores das polícias. Enfim, acredito que um dos legados desse plano foi a capacidade de imbuir nas forças o valor de dados e indicadores, isto é, de informações, na gestão do policiamento.

O local do Pacto pela Vida na redução de homicídio na Capital Federal parece ainda indefinido, entre outras hipóteses explicativas. Todavia, é preciso destacar que ele foi uma política ativa de enfrentamento da criminalidade, sobretudo a de caráter letal. Por isso, imagino que caberia aos atuais gestores, pesquisadores e interessados no campo da segurança pública revisitar o Pacto pela Vida no Distrito Federal, visto que ele ainda pode ser um modelo de política efetiva para salvar vidas pelo país afora.

 

[1] https://www.agenciabrasilia.df.gov.br/2023/12/30/seguranca-publica-menor-taxa-de-homicidios-em-47-anos/#:~:text=%E2%80%9CEm%202023%2C%20atingimos%20a%20menor,dedica%C3%A7%C3%A3o%20de%20todos%20foi%20essencial.

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