Perícia em evidência 17/01/2024

Quando o principal vestígio é um gás: o caso da morte de quatro jovens em Camboriú-SC

Ao se ligar preferencialmente à hemoglobina, o monóxido de carbono impede que o oxigênio seja transportado para as células pelo sistema circulatório, inviabilizando o processo respiratório

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Cássio Thyone Almeida de Rosa

Graduado em Geologia pela UNB, com especialização em Geologia Econômica. Perito Criminal Aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal. Membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Na  casuística pericial de mortes violentas (homicídios, acidentes e suicídios), aquelas que envolvem como agente causador um gás são consideradas raras, mas quando acontecem acabam por se constituir em verdadeiro desafio para a investigação, em especial a investigação científica, realizada pelos órgãos periciais. A maior dificuldade reside na manipulação de um vestígio etéreo, cuja coleta e análise exige técnicas específicas e o acesso ao vestígio ainda in loco nem sempre é possível. É o que ocorre, por exemplo, em ambientes confinados, cuja atmosfera se torna letal ao ser humano devido à mistura dos gases, que reduz o percentual de oxigênio a um nível insuficiente, ou mesmo quando gases mais reativos que o oxigênio concorrem e impedem que o processo respiratório se estabeleça de forma efetiva.

No primeiro dia do ano, um caso dessa natureza ganhou as manchetes. Na manhã do feriado, quatro jovens foram encontrados mortos dentro de um  veículo BMW Série 3, na cidade de Balneário Camboriú, litoral de Santa Catarina. Os três homens – Tiago de Lima Ribeiro (21 anos), Nicolas Oliveira Kovaleski (16 anos) e Gustavo Pereira Silveira Elias (24 anos) e a mulher, Karla Aparecida dos Santos (19 anos), aguardavam uma pessoa no estacionamento da rodoviária e permaneceram muito tempo no interior do veículo com o ar-condicionado ligado. Mesmo saindo e voltando eventualmente ao veículo, eles acabaram mortos em circunstâncias que exigiam uma explicação pelos órgãos de investigação. A abordagem inicial da polícia considerava as mortes como suspeitas e acidentais.

Segundo o que foi divulgado pelas agências de notícias, as vítimas eram residentes de Paracatu, no interior de Minas Gerais. Eles haviam passado o Réveillon no litoral catarinense e estavam retornando para São José, cidade da grande Florianópolis na qual estavam hospedados. No dia do fato, os jovens foram até a rodoviária para buscar uma quinta pessoa, que chegaria de Minas.

Após a perícia de local, as autoridades e os peritos consideraram como uma das  linhas de investigação a hipótese de a morte ter ocorrido por intoxicação gasosa. Mortes no interior de veículos por inalação de gases são conhecidas na casuística, muitas vezes relacionadas ao próprio ambiente confinado, que no caso constitui o compartimento dos passageiros, além de áreas fechadas como garagens, por exemplo.

O desafio inicial era provar como as mortes se estabeleceram. Nesse ponto os exames de necrópsia nos corpos, realizados no Instituto de Medicina Legal, foram de grande importância. A coleta de sangue e outros materiais biológicos poderia elucidar a causa das mortes.

No último dia 12, a Polícia Científica de Santa Catarina apresentou os resultados dos exames, que comprovaram a presença de grande quantidade de monóxido de carbono (CO) no sangue das vítimas, além de sinais de asfixia e outras características nos corpos, típicas desse tipo de processo.

Segundo informações apresentadas em uma coletiva de imprensa, foram mais de 15 exames realizados. Os materiais foram colhidos nos corpos, no local e no veículo.

Faltava ainda buscar explicar como o monóxido de carbono teve sua concentração elevada dentro do interior do veículo, em quantidades suficientes para produzir os óbitos. No mesmo dia das mortes, um primeiro exame no veículo identificou uma perfuração no cano de escape, em um local que fica entre o motor e o painel.

Aprofundando as investigações, a polícia  descobriu que o BMW 320I M Sport (2022) foi modificado para que o ronco do motor ficasse mais “agressivo”, de maneira a conferir ao veículo características mais esportivas.

Uma das hipóteses era a de que problemas na instalação pudessem deixar uma fenda na tubulação. Com isso, o gás poderia acessar a área de ar-condicionado e chegar aos passageiros. Outra possibilidade seria um defeito no difusor de escapamento que altera o ronco do motor por meio do escapamento. De toda forma, a perícia divulgou que o vazamento de monóxido de carbono se deu em decorrência de irregularidades no escapamento do veículo.

Sobre o agente causador das mortes, o monóxido de carbono (CO), por se tratar de um gás inodoro (sem cheiro), a percepção de que ele está em excesso em um ambiente é impossível. Esse gás pode resultar, na maioria das vezes, da combustão parcial de combustíveis fósseis, madeira ou carvão. A propriedade mais perigosa que apresenta reside em sua maior reatividade em relação ao oxigênio (O2), com a molécula de hemoglobina, presente nos glóbulos vermelhos do sangue. Ao ligar-se preferencialmente à hemoglobina, o gás impede que o oxigênio seja transportado para as células pelo sistema circulatório, inviabilizando o processo respiratório, “envenenando” assim uma vítima. Sem o oxigênio, a pessoa começa a sentir falta de ar, dor de cabeça, náuseas, sonolência, confusão e pode até ficar inconsciente, evoluindo ao óbito.

Agora resta que o inquérito aponte se há responsabilidades atribuíveis aos envolvidos na modificação do escapamento do veículo. A etiologia acidental está comprovada e as mortes lamentáveis explicadas jamais serão contornadas. Em todo caso, a perícia cumpriu seu papel mais uma vez!

 

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