Múltiplas Vozes 20/12/2023

O assédio moral organizacional nas Polícias Militares x a ciência

Se não bastassem os regulamentos herdados da Força terrestre do período ditatorial, que naturalizou por décadas o assédio moral nas casernas, casos de assédio moral em sua forma organizacional têm se disseminado em todo o Brasil em forma de perseguição e retaliação ao grupo de cientistas-policiais que adota uma ciência crítica para desvelar os problemas de suas instituições

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Fábio Gomes de França

Pós-Doutor em Direitos Humanos, Doutor e Mestre em Sociologia pela UFPB. Capitão da PMPB

Como sabemos, após a abertura político-democrática no Brasil, a partir da Constituição de 1988, tivemos a possibilidade de pesquisadores, especialmente aqueles do campo das Ciências humanas e sociais, despontarem nos estudos que envolvem os problemas atinentes à Segurança Pública de modo geral, e às polícias militares (PMs) de forma particular. Tivemos estudos pioneiros nas décadas de 1970 e 1980, mas de maneira incipiente, pois foi com a redemocratização que, em especial no caso das PMs, despontaram Dissertações, Teses, artigos e livros que passavam a descortinar com mais profundidade desde a formação PM nas casernas à atuação de seus profissionais nas ruas, na atividade-fim – ou, melhor dizendo, no famoso policiamento ostensivo, para manter a ordem pública, como aduz a Carta Magna de nosso País.

Para correr atrás do prejuízo, digamos assim, duas frentes se formaram por parte dos próprios PMs para também enriquecer os estudos acadêmicos sobre eles mesmos. Por um lado, PMs passavam a adentrar nos cursos de Pós-Graduação nas universidades públicas e privadas em todo o Brasil, despertando suas reflexões por um prisma crítico e somando-se ao campo dos pesquisadores “civis”. Por outro lado, gestores e executores PMs compunham os cursos ofertados por suas próprias instituições, geralmente em nível de especializações, e em menor grau por meio de mestrados e doutorados profissionais fechados em si mesmos, que passaram a se opor ao modo crítico do primeiro grupo de policiais, visto que “falavam mal da instituição” em suas pesquisas, despertando o desejo de formatar o campo das ciências policiais, com viés mais aplicado para a resolução de problemas diretos que envolvem as PMs, mas distantes de olhares críticos que vejam como situações-problema as “intimidades corporativas”. Além disso, esse último grupo não aceita que as PMs sejam estudadas por pesquisadores civis, pois, para eles, “só pode entender de polícia quem é policial”, o que já mostra certa imaturidade na compreensão de concepções epistemológicas que envolvem um campo dado de estudo.

É esse pano de fundo que, nos últimos anos, tem demonstrado como não se tem, nas PMs, uma visão homogênea sobre o saber científico. A ciência para o grupo de PMs críticos é reflexiva, compromissada com os Direitos Humanos e com a busca de uma atuação policial legalista e menos autoritária. No entanto, para o segundo grupo de PMs, a ciência tem importância secundária diante do enfoque operacional dos resultados alcançados nas ruas, com a prisão de criminosos e apreensão de armas e drogas. A operacionalidade viceja como um ideário cultural e ideológico tendo como suporte a importação do modelo do programa tolerância zero novaiorquino, sustentado por dados estatísticos que servem de propaganda governamental e institucional sem nenhuma preocupação com melhorias de índices sociais.

Entretanto, a questão é bem mais complexa do que parece e alcança as situações intra corporis das PMs. Se não bastassem os regulamentos herdados da Força terrestre do período ditatorial, que naturalizou por décadas o assédio moral nas casernas, PMs no trato direto de superiores para com os subordinados, destacadamente desde os cursos de formação, casos de assédio moral em sua forma organizacional têm se disseminado em todo o Brasil em forma de perseguição e retaliação ao grupo de cientistas-policiais que adota uma ciência crítica para desvelar os problemas de suas instituições.

O modus operandi, para usar um termo comum aos PMs, se repete em qualquer lugar do Brasil: as vítimas são perseguidas, transferidas compulsoriamente de seus locais de trabalho geralmente para Batalhões operacionais distantes de suas moradias, perdem vantagens salariais, são obrigadas a trabalhar com comandantes de perfis assediadores, tudo isso pelo discurso de que o que escrevem e pesquisam macula a imagem da instituição.

Na verdade, traçando um perfil psicanalítico a esta análise, acreditamos que o discurso ideológico de proteção à instituição é um tanto falacioso, pois partir de problemas institucionais para melhor analisá-los e compreendê-los cientificamente é buscar mapeá-los para que não mais ocorram. Nesse sentido, parece existir um sentimento explícito de inveja por parte de PMs reacionários que jamais alçarão ao status quo acadêmico por possuírem um saber instrumentalizado por concepções ideológicas sustentadas, como bem destacou nosso célebre Weber, pela busca por prestígio e reconhecimento, os quais estão notoriamente presentes nas carreiras acadêmicas de alguns policiais-cientistas espalhados pelo Brasil. A produção deles se mostra especialmente por artigos publicados em revistas, livros lançados recorrentemente e participação em importantes encontros que debatem a Segurança Pública, mas cujo currículo foi alcançado pela seriedade de seus escritos e compromisso com a “verdade racional e objetiva”.

Portanto, esse perfil assediador em seu nível organizacional precisa ser denunciado e combatido, tendo em vista a dificuldade de prová-lo, por ocorrer disfarçado de parâmetros legais como as transferências por “necessidade de serviço”. Isso oculta o exercício de um poder grupal eivado por um “rancor pervertido”, de pouca reflexão humana e desafeito à empatia por pessoas que, em síntese, fazem do conhecimento uma forma de termos uma sociedade mais justa, com instituições menos patrimonialistas, capazes de gerir a coisa pública partindo de um constitucionalismo democrático que luta para se afirmar diante da herança de tradições aristocráticas remanescentes nas PMs, contradizendo o ideal liberal que, desde o nosso passado imperial, adaptou-se a um liberalismo autoritário e moderado. Eis que o “rei” ainda caminha entre nós usando farda e coturno e parece reviver em cada esquina os suplícios corporais do período absolutista em nome de sua ordem contra quem não obedece suas imposições.

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