Segurança Pública na Amazônia 16/08/2023

Ecossistema do crime: ameaças do narcotráfico às comunidades quilombolas da Amazônia

Quilombos não são refúgios, mas locais de acolhimento. Não se busca uma política de guerra às drogas que possa reproduzir mais violência contra essas comunidades

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Aiala Colares Oliveira Couto

Nascido no quilombo de Pitimandeua, no Pará, é geógrafo com doutorado em Ciências do Desenvolvimento Socioambiental, professor da UEPA, onde coordena o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros, e está vinculado à Associação Brasileira de Pesquisadores Negros. Pesquisador sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

O desmatamento é a porta de entrada para outras drogas. Grandes desmatadores do agronegócio insustentável e o crime organizado – contrabando de madeira e de animais silvestres, pirataria de patentes, narcotráfico, trabalho análogo à escravidão, exploração sexual, milícias, e mineração ilegal –avançam Amazônia adentro, sem que nada os detenha. A cocaína tem acelerado essa destruição. Desde 2016, o Brasil é o segundo maior consumidor de cocaína do mundo, ficando atrás somente dos EUA e à frente da Europa, segundo o Escritório das Nações Unidas Sobre Crime Global. O país não é só rota, mas um potencial mercado consumidor.

Segundo os levantamentos do Instituto Mãe Crioula, cerca de 40 comunidades remanescentes quilombolas no estado do Pará denunciaram a presença em seus territórios de grupos criminosos nos últimos cinco anos, a maioria deles ligados a uma facção do Rio de Janeiro. A situação se agravou nos últimos meses, quando a quadrilha quis ampliar seu domínio na região. Ela entrou em conflito com outras organizações do Amazonas, Pará e São Paulo, que também vêm disputando o controle das rotas da cocaína na Amazônia. Os casos de violência e ameaças se intensificaram no segundo semestre de 2022 – com toques de recolher, invasões e assaltos constantes.

Quem vive em cidade grande – e aí não falo só de Rio de Janeiro e São Paulo, mas de Belém e Manaus também – conhece bem a história; o que vem acontecendo nas comunidades quilombolas amazônicas não é muito diferente. A Região Norte atrai o crime organizado, pois o baixo índice de desenvolvimento humano dado a essas populações fez delas presas fáceis para se tornarem engrenagens da vasta rede que se constrói para as operações ilícitas. As facções vêm construindo um ecossistema do crime.

Com a variedade de atividades, fica mais fácil ocultar a origem do dinheiro. Tráfico e garimpo ilegal construíram pistas de pouso clandestinas em áreas de garimpo e fazendas – há cerca de 2 mil no Pará. Mas os criminosos também usam as legalizadas, localizadas em propriedades particulares. Olhe só o ciclo se fechando: o desmatador abre caminho para a chegada e a saída de drogas, articula-se aos narcotraficantes.

Pelo fato de fazer fronteira com países que cultivam a tradição do plantio da folha de coca (Bolívia, Colômbia e Peru), a região é uma das portas de saída da cocaína para Europa e África, além de abastecer o mercado brasileiro, que consome quase 3 milhões de toneladas por ano. A contrapartida (sic) regional: em 2020, os nove estados da Amazônia Legal apresentaram taxas de mortalidade mais altas do que a média nacional, que foi de 23,9 mortes a cada 100 mil habitantes. Amapá (41,7), Acre (32,9) e Pará (32,5) lideram essa lista trágica, e a média na região (29,6) também é maior que a total.

Não se pode afirmar se aconteceu por uma conjunção de interesses ou uma grande coincidência, mas é fato que a política ambiental adotada no governo passado criou as condições perfeitas para que esse esquema proliferasse. O afrouxamento da legislação ambiental, o enfraquecimento ou aparelhamento de órgãos de fiscalização ambiental e de legalização fundiária – IBAMA, INCRA, FUNAI, Polícia Federal, ICMBIO, Fundação Palmares etc. – serviram para traçar um loteamento para o crime organizado na maior floresta tropical do planeta. O seu rastro de destruição e violência fica cada vez mais visível. Os assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips, que ao completarem um ano, sinalizaram para o mundo a dimensão do problema. Vejam só o caminho que a droga faz só na Amazônia: sai lá da fronteira do Amazonas com Peru e Colômbia e prejudica quilombos no nordeste do Pará, para as bandas do mar e do Maranhão.

Este ano teremos o primeiro Censo Quilombola do IBGE e estamos diante das preparações para a Conferência do Clima (COP-30), que será realizada em Belém do Pará, em 2025. Aproveitamos a ocasião para realizar o ato Aquilombar, para denunciar os desmontes de políticas públicas, a violência contra a população quilombola e aumentar o volume de nossa voz no debate político do país. Quilombolas são fundamentais para a preservação do meio ambiente, para a cultura e a medicina popular brasileira, portanto, não podemos ser excluídos de importantes debates sobre crise climática e segurança pública. Todos nós deveríamos aprender com os indígenas as lições de resistência; em uma palavra, temos algo vital a oferecer para o Brasil de hoje: tolerância. Quilombos não são refúgios, mas locais de acolhimento. Com a mudança de governo no Brasil, não buscamos uma política de guerra às drogas que possa reproduzir mais violência contra nosso povo. O que de fato queremos é que nossas pautas não sejam invisíveis diante das agendas governamentais e das políticas públicas, mas, acima de tudo, queremos ser ouvidos. O território quilombola também é o lugar da escuta e da construção coletiva.

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