Múltiplas Vozes 25/01/2023

A MONITORAÇÃO ELETRÔNICA NOS ATENTADOS EM BRASÍLIA

A monitoração eletrônica, em geral, não tem a capacidade de impedir crimes políticos, crimes virtuais, crime organizado e terrorismo. Ela serve para as situações nas quais a localização das pessoas é relevante para garantir ou conferir condições estabelecidas para o cumprimento de pena ou de medidas cautelares

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Cristina Zackseski

Professora associada da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília e coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança (Nevis/Ceam/UnB)

Podem passar desapercebidas do grande público as implicações do fato de o jornalista cearense, Wellington Macedo de Souza, estar usando uma tornozeleira eletrônica ao participar dos recentes atentados ocorridos em Brasília. No entanto, esses episódios são interessantes para pensarmos em controles para os crimes mais destacados atualmente no panorama político nacional: crimes contra o Estado Democrático de Direito e terrorismo. Wellington foi identificado como um dos responsáveis por ter, na companhia de Alan Diego dos Santos, colocado e tentado detonar uma bomba num caminhão que carregava querosene e estava estacionado nas proximidades do Aeroporto Internacional de Brasília.

A caracterização das funções exercidas pela monitoração eletrônica, numa tentativa de identificar as possibilidades reais de uso e os mitos em torno do dispositivo, já está publicada em trabalho acadêmico de minha autoria, e um caso como esse pode ser muito esclarecedor para ilustrar alguns pontos indicados no referido trabalho.

Segundo reportagem publicada pelo portal de notícias g1 Wellington Macedo de Souza teve prisão domiciliar com monitoração eletrônica decretada pelo ministro Alexandre de Moraes por incentivar os atos antidemocráticos de 07/09/2021. Além disso: “Wellington é de Sobral, interior do Ceará, e coleciona processos vídeos contra políticos locais e professores da rede pública de ensino da cidade.” A matéria mencionou mais de 60 casos desse tipo, cujo conteúdo e seus alvos poderiam ser objeto de outro artigo. Um delegado da Polícia Civil do Distrito Federal confirmou, ainda na reportagem citada, a presença dele nos atos de depredação e ataques ao prédio central da Polícia Federal em Brasília no dia 12/12/2022, dia da última diplomação do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. As redes sociais do acusado contêm, também, imagens dele com o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro e com a ex-ministra e agora senadora Damares Alves, com quem já trabalhou.

A seguir apresentarei alguns pontos relevantes do debate sobre o uso da monitoração eletrônica a partir dos elementos deste caso.

 

Agentes e condutas:

A primeira discussão é sobre a efetividade das tornozeleiras eletrônicas, em função do seu uso para determinados perfis de agentes e condutas. A monitoração eletrônica, em geral, não tem a capacidade de impedir crimes políticos, crimes virtuais, crime organizado e terrorismo. Ela serve para as situações nas quais a localização das pessoas é relevante para garantir ou conferir condições estabelecidas para o cumprimento de pena ou de medidas cautelares. É estranho pensar que um localizador seja instalado sem restrição de perímetro, somente com proibição de contato entre acusados, por exemplo.

Em que pese o dispositivo ter sido útil para a identificação do trajeto de Wellington até o aeroporto na data e hora do atentado, combinando-se o registro de deslocamento da tornozeleira com as imagens das câmeras do próprio caminhão e do comércio local, a mídia noticiou a frequência diária dele ao acampamento em frente ao Quartel-General do Exército, onde teria pegado a bomba com George Washington de Oliveira Sousa.

A presença de Wellington no acampamento dissidente já seria razão para a medida imposta ter sido revisada e revogada. Um investigado monitorado também não poderia se aproximar de um aeroporto internacional sem disparar um alarme na central de monitoração. Porém, ao contrário do que poderíamos supor, a monitoração não tem o condão de informar decisões imediatas por parte das autoridades, a menos que sejam estabelecidas, registradas e levadas a sério algumas prioridades, como se houvesse uma espécie de “monitoração VIP”.

 

Protocolos e excessos:

Para que uma monitoração eletrônica seja revogada é necessário que se cumpra um procedimento. Em trabalhos de campo sobre o assunto existem relatos de revogações injustas de monitorações em situações nas quais os monitorados consideram que suas justificativas não foram consideradas, como, por exemplo, nas falhas da rede de telefonia ou de problemas técnicos dos próprios aparelhos. De outra parte, os descumprimentos de perímetros, quando determinados pelo juiz, são anotados em relatórios que podem demorar a ser informados. No documentário “Corpo Delito” [1]  há um exemplo disso, com a leitura em audiência, para o juiz, dos relatórios de violação.

Em entrevista a um juiz argentino em 2018, realizada para a pesquisa que resultou no texto mencionado no início deste artigo, há uma fala bastante elucidativa a esse respeito. Ele disse que para revogar a monitoração em razão de violações nas condições impostas é preciso fazer uma audiência, chamar o Ministério Público e só aí, se for o caso, prender a pessoa, o que nem sempre é desejado, pois muitas vezes são pessoas que nem mesmo estão no gozo de suas faculdades mentais.

Ou seja, a monitoração, assim como boa parte do que as soluções tecnológicas, não é um controle automático, ela dá trabalho [2] ao sistema, tanto para quem observa os trajetos dos indivíduos nas centrais, quanto para os demais integrantes do sistema de justiça.

 

Processos decisórios:

Essas observações nos levam novamente ao “perfil” indicado para a monitoração. Se essa medida for aplicada excessivamente, como no Brasil, onde há muita gente monitorada (mais de 80 mil pessoas no ano de 2022), pior será o controle daquelas que realmente importa saber os movimentos do ponto de vista preventivo, decisório ou executório.

Chama atenção também o fato de que somente depois da tentativa de explosão da bomba próxima ao Aeroporto Internacional de Brasília em 24/12/2022 é que Wellington retirou a tornozeleira e fugiu. Por que ele só retirou a tornozeleira depois de ter ido até o caminhão de combustíveis?

São diversas hipóteses, algumas mais, outras menos absurdas: ele esqueceu que estava monitorado (incorporou o dispositivo), ou contava com a inércia do sistema (já tinha participado de crimes estando monitorado), ou com a conivência dos controladores (não há notícia sobre providências), ou ainda com o sucesso do golpe de estado (não haveria mais a autoridade coatora investida na função)?

A batalha campal do dia 08/01/2023 atualizou as definições de crime no Brasil. O caso do atentado ao caminhão estacionado nas proximidades do aeroporto deverá servir para que sejam repensados e atualizados os protocolos para a monitoração eletrônica, refinando os critérios para o uso desses dispositivos, orientando-os por avaliações de risco que certamente não incluem terroristas como pessoas para as quais tal medida seja recomendada.

Notas:

[1] Esta análise está desenvolvida em: PIMENTA, Vitor; ZACKSESKI, Cristina. Corpo delito: monitoramento eletrônico para além da (des)ilusão. In. MACHADO, Bruno Amaral; ZACKSESKI, Cristina; DUARTE, Evandro. Criminologia e cinema: semânticas do castigo. São Paulo: Marcial Pons, 2018, p. 142 – 164

[2] No livro La tecnología es la nueva prisión. Barcelona: Bosch, 2021, também de minha autoria, está descrito o caso catalão de uso da monitoração eletrônica a partir do qual se pode sustentar essa afirmação.

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