Reforma das polícias brasileiras e a proposta de carreira única
Carreira única nas polícias – seja PF, polícias civis e militares – é tema polêmico que toca em direitos, interesses, privilégios e valores cristalizados dos ocupantes de certos cargos, o que coloca em pé de guerra integrantes de uma mesma corporação
Alexandre Pereira da Rocha
Doutor em Ciências Sociais (UnB); membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP)
Entre as propostas de reformas das polícias brasileiras, uma das que mais entusiasmam o meio policial é da carreira única. Em linhas gerais, a proposta defende que as polícias deveriam ser organizadas numa carreira unificada, sendo que todo policial ingressaria pela mesma porta de entrada; além de progredir nas corporações de postos de execução até os de comando nas mais variadas atividades. A principal justificativa é que isso geraria fortalecimento da carreira policial, o que impactaria na eficiência das atividades desempenhadas. Ademais, por não haver cisões entre cargos, a carreira única poderia empoderar todos os integrantes de uma polícia.
Atualmente as polícias brasileiras, tanto civis quanto militares, comportam carreiras distintas; com formas diferentes de ingressos, de atividades realizadas e de remunerações recebidas. Em resumo, adota-se o sistema de dupla entrada, com seleções para cargos de direção e para de execução. Por exemplo, nas polícias civis há seleções para cada cargo; seja de delegado, perito, agente, escrivão, papiloscopista, entre outros. As formas diferentes de seleção se fundamentam nas especializações e competências dos cargos; assim, os papéis estão definidos e limitados por estatutos legais. Com efeito, não há possibilidade de migração direta entre os cargos. Ou seja, não há ascensão de um cargo de execução para um de direção; por exemplo, do cargo de agente para o de delegado.
Ressalta-se que, nas polícias civis, o cargo de delegado é distanciado das demais colocações, em termos de prestígio e de remuneração. Observa-se que, segundo o Art. 144, § 4º da Constituição de 1988, compete aos delegados de carreira dirigir as corporações. Em algumas organizações, como a Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) e a Polícia Federal (PF), o cargo de perito possui vencimentos equiparados aos de delegado, mas não há possibilidade de peritos ocuparem as direções das organizações. Os outros cargos, como de agentes, escrivães, papiloscopistas, ficam num nível inferior, na maioria das vezes com vencimentos bem distantes dos de delegados e peritos. Esse modelo, a despeito do regramento militarizado, é semelhante nas polícias militares estaduais, entre os postos de oficiais e de praças.
De forma curiosa, a Polícia Rodoviária Federal (PRF), já no texto original da Constituição Federal de 1988, no Art. 144, § 2º, foi estruturada em carreira única. Destaca-se também que a Guarda Municipal, conforme Art. 9º, da Lei nº 13.022/2014, é formada por servidores públicos integrantes de carreira única e plano de cargos e salários. Da mesma forma, as recentes Polícias Penais têm buscado o desenho da carreira única. As polícias do Poder Legislativo Federal também apresentam apenas um cargo, o de policial legislativo. Além disso, há a comparação com outras forças internacionais; por exemplo, a Polícia Federal Norte Americana (FBI), que é organizada em carreira única.
Os supracitados modelos instigam alas progressistas das polícias civis e militares, mas o tema está longe de ser consenso nas organizações. Nota-se que a proposta de unificação dos cargos nas polícias não procede das cúpulas dessas corporações, porém decorre de movimentos corporativistas de profissionais insatisfeitos com as distinções por cargos, embora todos sejam policiais. Ou seja, a pauta de carreira única é originária de sindicatos ou associações de policiais de cargos considerados menos valorizados nas corporações. Por exemplo, na PF a sugestão foi promovida pelo movimento dos agentes, escrivães e papiloscopistas, mais conhecido pela sigla EPA’s. Diante disso, o tema tem gerado embates entre os ocupantes de cargos de delegado com os de outros cargos nas polícias civis; ou entre oficiais e as praças nas polícias militares.
Além da situação conflituosa entre os integrantes das polícias, não há concordância como se constituiria a carreira única. Assim, não se sabe ao certo como se processaria a entrada única, tampouco como seriam as progressões e exercícios das funções. Com efeito, perguntas ainda ficam sem respostas legais. Por exemplo: nas polícias civis, como seriam ocupadas as funções desempenhadas por delegados e peritos? Seriam tais funções formas de progressão da carreira? Não sendo tais funções etapas naturais da carreira, então haveria seleções internas para ocupá-las? Consequentemente, nem todos os policias chegariam ao topo da carreira? Qual seria o estágio final da carreira de policial? Como se dariam as regras de transição? Enfim, qual modelo de carreira única se defende?
Numa tentativa de superar essas dúvidas foram apresentadas várias sugestões de alteração legislativa no texto constitucional. Por exemplo, no âmbito da PF, citam-se as propostas de emenda à Constituição (PEC), n° 73/2013 e nº 168/2019, as quais indicam que o órgão seja estruturado em carreira única. Já nas demais polícias civis e militares, aponta-se a PEC nº 273/2016, que sugere que os integrantes de cada órgão do Art. 144, da Constituição Federal, sejam organizados em carreira, cujo provimento originário se daria no primeiro nível. Em linhas gerais, essas propostas pretendem estabelecer uma única porta de entrada, sendo que os policiais iriam progredindo e assumindo funções conforme seus conhecimentos, potencialidades e interesses; além da conveniência e oportunidade da administração pública. Caso a carreira única fosse implementada, representaria praticamente o surgimento de outro modelo de polícia; contudo, até o momento, a medida não logrou êxito.
Num contramovimento, ocupantes do cargo de delegado nos níveis federal e estadual têm se mobilizado para o desmembramento definitivo da carreira de delegado de polícia da de policial. Por exemplo, na PCDF, conforme lei nº 9.264/1996, há uma carreira exclusiva para delegado e outra para policiais civis, que engloba agentes, escrivães, papiloscopistas e peritos. Em geral, o propósito desse movimento corporativista é aproximar cada vez mais o cargo de delegado das carreiras de natureza jurídica, assim se desacoplando da carreira policial e liquidando o argumento da unificação dos cargos. No mesmo sentido, peritos têm almejado a desvinculação da carreira policial, com criação de uma polícia científica; conforme PEC nº 76/2019.
Enfim, carreira única nas polícias – seja PF, polícias civis e militares – é tema polêmico que toca em direitos, interesses, privilégios e valores cristalizados dos ocupantes de certos cargos; o que coloca em pé de guerra integrantes de uma mesma corporação. Nesse contexto, os custos da aplicação da carreira única são maiores do que possíveis benefícios advindos dessa alteração. Resultado: a despeito de o assunto permanecer vivo nos debates policiais, no atual cenário há impasses internos e externos às corporações que dificultam a inclusão dele como item viável para reforma das polícias brasileiras.