Múltiplas Vozes 23/11/2022

NÃO EXISTIRÁ SEGURANÇA PÚBLICA SEM COMPROMISSO ANTIRRACISTA

O setor da segurança pública parece não ter pacificado o debate em torno da necessidade de implementação de políticas públicas de focalização refinada nas populações e territórios mais vulneráveis à violência

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Dennis Pacheco

Mestrando em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC e pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Thais Carvalho

Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo e estagiária do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

A razão de existir do dia da Consciência Negra é fomentar reflexão, debate, celebração, luta e memória da sociedade como um todo em torno da negritude e de suas contribuições para a humanidade. É em respeito à data, ao legado negro, seu presente e seu futuro, que escrevemos este texto, que traz um breve panorama analítico do que nos dizem os dados da segurança pública sobre vulnerabilidades e desigualdades raciais no setor.

Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, nós, negros, somos os mais vulneráveis às mortes causadas pelas polícias: 84,1% dos mortos pelas polícias em 2021 eram negros. Nos seus efetivos, os mais vulneráveis à letalidade violenta intencional são também negros: 67,7% dos policiais assassinados em 2021 eram negros. O medo de ser alvo de violência por parte da Polícia Militar é muito maior entre negros (69,2%) que entre brancos (53,9%).

Nós, negros, também somos os mais vulneráveis à letalidade violenta criminal: 77,6% das vítimas de homicídio doloso e 67,6% das vítimas de latrocínio em 2021 eram negras. O medo de ser vítima de um assassinato é maior entre negros (85,3%) que entre brancos (78,5%).

Outro lugar – dos tantos – que escancaram a desigualdade racial do país é o sistema prisional: em 2021, as pessoas negras representavam 67,5% da população carcerária. Lélia Gonzalez [1]  não nos deixou esquecer que a consequência da seletividade racista do sistema de justiça criminal cria uma tendência à solidão em mulheres negras, justamente pela desproporcionalidade discriminatória através da qual toma seus filhos, pais, irmãos por alvo e objeto.

Nós, mulheres negras, também somos as mais vulneráveis à violência de gênero: 62% das vítimas de feminicídio, 70,7% das vítimas das demais mortes violentas intencionais; 52,2% das vítimas de estupro e estupro de vulnerável, 43,3% das que já sofreram algum tipo de assédio eram negras [2].

 

 

Em seu álbum AmarElo, Emicida canta sobre as pequenas alegrias da vida adulta, sobre o dia a dia na cidade, do amanhecer ao anoitecer, sobre a importância da amizade, da família e dos laços formados nas vivências. Mas esse disco em forma de respiro não só canta as belezas das experiências e relações como também abre espaço para denunciar a violência sofrida pelos corpos negros no Brasil. Denúncia que requer coragem, especialmente porque o racismo afeta também a mobilização em torno de pautas cuja natureza e, por conseguinte, cujas transformações são políticas: em 2022, o medo de ser agredido fisicamente por sua escolha partidária ou política era maior entre negros (70,1%), que entre brancos (61,6%).

Na faixa Ismália, o rapper escancara a forma pela qual a violência e morte de pessoas negras foi naturalizada ao lembrar que, no contexto brasileiro, existe a pele alva e a pele alvo. Lembrando o pouco espaço de felicidade plena que nos resta.

Com a fé de quem olha do banco a cena

Do gol que nóis mais precisava na trave

A felicidade do branco é plena

A pé, trilha em brasa e barranco, que pena

Se até pra sonhar tem entrave

A felicidade do branco é plena

A felicidade do preto é quase

– Emicida, Ismália

De 2020 para 2021, os homicídios contra pessoas brancas foram reduzidos em 26,5%. Os homicídios contra pessoas negras cresceram 7,5%. No mesmo período, a taxa de mortalidade de brancos por intervenções policiais caiu 31%, enquanto a de negros aumentou 6%.

Nos últimos anos, houve intenso esforço de desmonte das estruturas de enfrentamento ao racismo, de redução das   desigualdades raciais que nos tornam vulneráveis, de reconhecimento das injustiças e violências a que somos submetidos por sermos negros, de disseminação do legado de contribuições de nossa negritude para o Brasil e para o mundo, além da instrumentalização de estereótipos racistas para obtenção de rentabilidade eleitoral.

Como Ismália, este texto apresenta-se como uma denúncia, uma forma de demonstrar que o cenário, pior que permanecer o mesmo, piorou. Mas, como o restante do disco AmarElo, este texto também se apresenta na intenção de um respiro aliviado futuro, no desejo de que pessoas negras não sejam apenas corpos de estatísticas cruéis, apresentadas no ainda repetitivo formato: negros somos [[alvos]].

Reconhecer isso é somente o primeiro passo para transformarmos essa dura realidade que nos assassina cotidianamente. Ainda assim, o setor da segurança pública parece não ter pacificado o debate em torno da necessidade de implementação de políticas públicas de focalização refinada nas populações e territórios mais vulneráveis à violência, nós negros.

É necessário implementar políticas de controle da atividade policial e prevenção ao uso abusivo da força, que passam por responsabilizar as cadeias de comando, transformar os modelos de policiamento e abolir os estereótipos sobre negros como perigosos e abjetos que habitam o imaginário colonialista brasileiro.

O racismo é um problema que afeta a todos nós, que é responsabilidade de todos nós. Deve ser de todos nós o compromisso antirracista de reivindicarmos o direito dos negros a vidas plenas com nossas famílias e amores, a sonharmos e nos inspirarmos em figuras que emergiram nesse solo que, num primeiro momento, parecia infértil, mas que nos ofereceu Emicida, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Clóvis Moura, Djonga, Marielle Franco, Luiz Gama, Carolina Maria de Jesus, Sueli Carneiro, Tasha e Tracie, Alcione e tantas outras potências que poderíamos conhecer, mas [[viraram estatística]] pelo caminho.

***

 

[1] GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organização de Flavia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

[2] Entre as brancas, o percentual foi de 30%.

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