Múltiplas Vozes 21/09/2022

O papel do Exército no controle do mercado de armas de fogo

Com o crescimento do número de armas de fogo em circulação, dos clubes de tiro e do número de CACs, é mais necessário do que nunca ter um controle eficaz sobre o mercado e os militares já deixaram claro que não conseguem cumprir esse papel

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Roberto Uchôa

Policial federal e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Desde a promulgação do Estatuto do Desarmamento em 2003 ficou a cargo do Exército Brasileiro registrar e fiscalizar as armas de fogo adquiridas e mantidas pelos CACs (caçadores, atiradores desportivos e colecionadores).  Os equipamentos pertencentes a esse público desde então são registrados no banco de dados dos militares, o SIGMA (sistema de gerenciamento militar de armas) e, apesar de existir a obrigação de que esse banco seja integrado ao outro banco de dados gerido pela Polícia Federal, o SINARM (sistema nacional de armas), isso nunca foi cumprido pelos militares. Não existiam muitos CACs no país e o SINARM sempre foi considerado o mais relevante pela quantidade de armas.

Ocorre que, desde 2017, quando foi autorizado, através da portaria nº28 Colog, o porte de trânsito para os CACs com arma pronta para uso nos trajetos entre o local do acervo e o clube de tiro, a busca por certificados de registro no Exército passou a crescer de forma exponencial. Como o porte de arma de fogo desde o Estatuto do Desarmamento sempre foi tratado como exceção, sendo necessária análise subjetiva para concessão do porte pela Polícia Federal, muitos que não conseguiam viram nessa mudança uma possibilidade de circularem armados sem os requisitos exigidos pela legislação.

Se em 2017 existiam 63.137 pessoas com registros ativos de CACs, em junho de 2022 esse número aumentou mais de dez vezes, chegando a 673.88 registros. O número de armas registradas para esse público seguiu o mesmo caminho, mas com um crescimento menor. Enquanto em 2017 havia 290.711 armas registradas para CACs, em julho de 2022 o total ultrapassou a barreira de um milhão de armas, totalizando 1.006.725, segundo levantamento feito pelo Instituto Igarapé.

Enquanto isso, o orçamento destinado para que militares fiscalizem esses arsenais particulares caiu pela metade. Segundo outro levantamento feito pelo Instituto Igarapé, o orçamento investido em visitas em 2021 foi 54% do que o que foi aplicado em 2018. Mesmo assim, os militares afirmaram que fiscalizaram em 2021 seis vezes mais locais do que em 2018, em uma conta que não fecha e não faz sentido. Em 2020 teriam sido fiscalizados apenas 2,3% dos locais que deveriam ser visitados.

Porém, o problema do papel dos militares no controle de armas de fogo não se limita a questões ligadas à fiscalização. Em recente questionamento feito pelo TCU (Tribunal de Consta da União), referente à solicitação de informações feitas pelo portal UOL, o Exército afirmou não ter como informar quantas armas estão registradas para CACs em cada município do país. E que, se fossem obrigados a responder, seria necessário deslocar 12 militares por 180 dias para fazerem um levantamento e que isso acarretaria “considerável prejuízo no cumprimento de outras atividades, como regulamentação, fiscalização e autorização referentes ao trabalho com produtos controlados pelo Exército”.

Mas não para por aí. Outro problema admitido pelo próprio Exército é com relação ao seu banco de dados. Em resposta a solicitação de informações, os militares afirmaram que erros de preenchimento nos requerimentos possibilitaram que até canhões e morteiros fossem registrados em nome de CACs, mesmo sendo proibidos pela legislação. Se o desconhecimento sobre a situação real das armas de fogo em circulação em posse de CACs já não fosse uma séria questão que os militares se recusam a resolver sob o pretexto de desviar o efetivo de 12 militares de suas funções atuais, mesmo que seja de conhecimento comum de que atualmente isso poderia ser facilmente solucionado com recursos tecnológicos, há ainda um fator extremamente preocupante que é a ausência de consulta a bancos de dados criminais no momento da concessão do certificado de registro para o requerente.

Os militares afirmaram que não fazem consulta a sistemas como o INFOSEG do Ministério da Justiça para saber se a pessoa responde ou respondeu a inquérito policial ou processo criminal em algum local do país. Para os militares basta a conferência dos documentos apresentados e a verificação de sua autenticidade. Essa ausência de pesquisa possibilitou que um integrante do PCC em Minas Gerais conseguisse se registrar como CAC e tivesse adquirido diversas armas de fogo, incluindo um fuzil, mesmo tendo respondido a 16 inquéritos e processos criminais, incluindo crimes por tráfico de drogas e homicídio. Indagados, os militares afirmaram que o criminoso mentiu ao declarar que não respondia a processos criminais ou investigações.

São evidências de que os militares não têm conseguido cumprir seu papel na fiscalização e controle no mercado legal de armas de fogo. Seja pelo apagão de dados no SIGMA, pela falta de integração dos bancos de dados e até mesmo pela falta de procedimentos simples como pesquisas de antecedentes, ficou claro que o papel do Exército brasileiro deve ser repensado. Com o crescimento do número de armas de fogo em circulação, dos clubes de tiro e do número de CACs, é mais necessário do que nunca ter um controle eficaz sobre o mercado e os militares já deixaram claro que não conseguem cumprir esse papel.

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