Múltiplas Vozes

A violência nas prisões brasileiras

A violência e os maus-tratos sofridos pelos presos estão diretamente relacionados à qualidade e quantidade das assistências oferecidas pelo sistema prisional aos custodiados

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Luis Flavio Sapori

Doutor em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ, 2006). Foi Secretário Adjunto de Segurança Pública do Estado de Minas Gerais no período de janeiro/2003 a junho/2007. Coordenou o Instituto Minas Pela Paz no biênio 2010-2011. Atualmente é professor do curso de Ciências Sociais da PUC Minas e coordenador do Centro de Estudos e Pesquisa em Segurança Pública

A vida no cárcere no Brasil tem sido marcada por atos de tortura, maus-tratos e violações de direitos. Não há como contestar essa afirmativa. Entretanto, não dispomos de dados empíricos que permitam diagnóstico consistente das diversas manifestações do fenômeno. Tendo em vista o preenchimento dessa lacuna, acabo de lançar o livro Tratamento Penitenciário. Um estudo sobre tortura, maus-tratos e assistências às pessoas privadas de liberdade, que resulta de ampla pesquisa realizada no estado de Minas Gerais. Publicado pela Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes (EJEF), do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), tem na coautoria Luiz Carlos Rezende e Santos, juiz coordenador da vara de execução penal de Belo Horizonte. A obra é fruto da parceria inovadora formada pela Associação Voluntários para o Serviço Internacional do Brasil (AVSI Brasil), o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais, a Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados (FBAC).

Em termos metodológicos, foi aplicado um survey numa amostra de  1.520 presos, sendo 1.374 homens e 146 mulheres. Além disso, foram realizadas 45 entrevistas semi-estruturadas, sendo 27 com homens e 18 com mulheres. O estudo compreendeu o período de agosto de 2019 a março de 2020.

As principais conclusões obtidas na pesquisa podem ser resumidas nos seguintes termos:

  1. As situações de violência física no sistema prisional são recorrentes e envolvem principalmente a ação de funcionários, especialmente policiais penais e de grupos especializados, contra os internos. Cerca de 85% dos entrevistados disseram terem sido vítimas de pelo menos uma das formas de agressão física. Mais da metade dos entrevistados (53%) respondeu que sofreram agressões químicas com spray de pimenta frequentemente. Também merecem destaque as agressões vivenciadas frequentemente por meio de disparos de tiros de borracha (20,7%), tapas e socos (17,5%), chutes (16,1%) e pauladas (7,7%);
  2. As ameaças e agressões verbais também fazem parte do cotidiano das prisões. Cerca de 41,5% dos presos informaram já terem sido vítimas desse tipo de violência por algum funcionário do sistema prisional.
  3. Completando esse quadro, cerca de 18% dos presos relatam que já foram colocados em solitária por mais de 15 dias, com confinamento em locais precários, sem ventilação, sem luz natural e sem condições de higiene;
  4. A violência cometida por outros presos é fenômeno também relevante. Cerca de 13,2% dos presos afirmaram terem sido vítimas de alguma forma de agressão física listada no questionário. Os tapas e socos foram os mais citados;
  5. Há diferenças de gênero na manifestação da violência e maus-tratos no sistema prisional. As presas são menos vitimizadas do que os presos nas diversas formas de agressão, seja recebendo spray ou gás de pimenta, tiros com munição de borracha, tapas e socos ou mesmo chutes. O mesmo não ocorre na incidência das agressões físicas entre as mulheres, sendo superior à verificada entre os homens. Cerca de 20,5% das presas relatam que foram vítimas com alguma frequência de tapas e socos, 17,8% foram vítimas de chutes e 9,5% foram vítimas de sufocamento. Entre os homens esses patamares ficaram respectivamente em 12,3%, 10,3% e 1,7% .

A despeito da relevância desse diagnóstico, entendo que a principal evidência obtida na pesquisa diz respeito ao fato de que a violência e os maus-tratos sofridos pelos presos estão diretamente relacionados à qualidade e quantidade das assistências oferecidas pelo sistema prisional aos custodiados. Os testes estatísticos realizados comprovam que a chance de vitimização de violências físicas e verbais cresce à medida que decrescem a qualidade e quantidade da alimentação recebida pelos presos, à medida que aumenta a superlotação das celas, à medida que aumenta a precariedade dos banheiros, à medida que diminuem os acessos às assistências à saúde, ao ensino e ao trabalho. A chance de quem avalia a qualidade da comida “péssima” ser agredido por tiros de borracha é 2,81 vezes maior de quem acha a comida “boa” ou “ótima”; e a chance de quem considera o espaço da cela não suficiente ter sido agredido por chutes é 2,22 vezes a chance de quem considera a cela suficiente.

Essa conclusão coaduna-se com evidências empíricas obtidas em estudos internacionais, mais particularmente os atinentes à perspectiva teórica institucional. Há forte correlação entre fatores institucionais e violência prisional, ou seja, autores dessa vertente teórica postulam que o nível de violência no interior dos cárceres está relacionado ao nível de profissionalismo da equipe e da liderança prisional, ao tamanho e à qualidade das instalações prisionais, às condições da infraestrutura prisional, à existência e aplicação de procedimentos de segurança e controle e à oferta de programas de reabilitação e treinamento para os internos. Em outras palavras, se quisermos diminuir consideravelmente a violência no interior dos presídios brasileiros, medida básica e imprescindível seria a plena efetivação das assistências previstas na Lei de Execução Penal. Simples assim!

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